A primeira coisa que um economista tem que aprender
é que, a despeito do que dizem os mais sofisticados e artificialmente
matematizados livros de microeconomia, o homem-indivíduo não existe.
Só existe a "rede" de relações em que
está imerso no universo econômico, controlado pelas instituições que ele mesmo
foi "descobrindo" ao longo de sua história para a sua subsistência
material (alimento, vestimenta e abrigo): o Estado e o mercado. O primeiro
garante as condições de um razoável funcionamento do segundo, impondo-lhe
normas de comportamento em troca da garantia de sua existência.
Os dois polos dessa organização foram evoluindo
lentamente para uma combinação que permita - agora sim - ao homem-indivíduo
gozar crescentemente de valores que aprecia: 1) sua liberdade de escolha e a
apropriação dos benefícios que dela eventualmente decorram; e 2) o uso
relativamente eficiente de seu esforço para produzir os bens e serviços de que
necessita para o seu bem-estar. Essa "necessidade" aumenta
naturalmente por uma disposição psicológica. É a "eficiência" que lhe
proporciona maior tempo livre para procurar sua humanidade.
Não há leis naturais na economia e não existe
equilíbrio de longo prazo que possa determinar a combinação ótima da relação
Estado versus mercado. A história mostra que um Estado constitucionalmente
controlado, suficientemente forte para impor regulação aos mercados
(particularmente ao financeiro), parece ser uma combinação razoável, que
permite um aumento da quantidade de bens e serviços com os recursos sempre
escassos de que dispõem as sociedades.
A antinomia Estado versus mercado é disfuncional.
Mas há mais. Há um terceiro valor que o homem-indivíduo inserido nas relações
econômicas procura, além da liberdade e da eficiência: uma preferência pela
relativa igualdade. Inserido na "rede", ele aparentemente tem maior
alegria quando suas relações se realizam com membros em condições próximas às
suas.
O problema é que essa maior igualdade não pode ser
obtida pelo funcionamento dos mercados. Esses combinam liberdade individual com
eficiência individual, mas, por serem altamente competitivos, estimulam a
desigualdade. Estudos empíricos sugerem que a partir de certo ponto essa
desigualdade é também disfuncional com relação à eficiência coletiva.
Há, por outro lado, um fato empiricamente bem
comprovado. Os mercados, apesar de suas virtudes, têm um problema sério: são inerentemente
instáveis. A ilusão criada pela teoria neoclássica, que os economistas tinham
descoberto políticas econômicas que tornavam as crises "obsoletas"
(como afirmou um prêmio Nobel em 2003!), foi enterrada "à la lumière des
flambeaux" na crise de 2007...
Dois fatos: 1) a possibilidade que o mercado possa
produzir um nível de desigualdade não funcional; e 2) o fracasso da ideia que
tínhamos entrado num período de "grande moderação", por conta das
políticas econômicas fiscal, monetária e cambial desenvolvidas nos últimos 30
anos, deixou claro que a economia é um tipo de conhecimento muito complexo. Ele
está longe de poder ser dominado pelo cientificismo produzido pela inveja da
física, que encantou alguns economistas.
O papel fundamental de um Estado constitucionalmente
controlado transcende - e muito - o de ser o "garante" das
instituições que permitem aos mercados serem instrumentos úteis
(indispensáveis, mesmo) para o desenvolvimento social e econômico. Ele é o
único instrumento capaz de, em condições especiais e com medidas corretas,
eventualmente, corrigir as flutuações do emprego e da produção, quando os
agentes sociais congelam diante da incerteza absoluta.
É importante entender que essa incerteza não é do
tipo do risco atuarial, que tem uma história e ao qual pode aplicar-se o
cálculo das probabilidades. É a incerteza essencial à qual se referia Keynes,
do tipo: o que será a eurolândia daqui a cinco anos? É a incerteza produzida
pelo fato que o passado não tem qualquer informação sobre o futuro. Alguém acha
que o destino da União Monetária Latina no século XIX pode nos informar como
terminará a União Econômica Europeia no século XXI?
Quando isso acontece, destrói-se a "rede"
social, porque desaparece o seu elemento essencial: a confiança mútua. Termina
instantaneamente o crédito interbancário e com ele destrói-se parte da demanda
global do setor privado. Para sustentar o nível de emprego e de renda, só resta
tentar substituí-la pela demanda pública. O consumo é a parte mais importante
da demanda e mais resistente à flutuação do PIB principalmente pelas medidas
anticíclicas da política fiscal. O investimento é menor, mas é mais volátil,
porque depende da expectativa do futuro e da possível taxa de retorno (o lucro
esperado) que são mortalmente atingidos pela incerteza.
Nessa circunstância, só o investimento público pode
socorrer a economia, porque ele amplia a demanda e, ao mesmo tempo, a
capacidade produtiva. Para não comprometer o equilíbrio fiscal, o melhor é
realizá-lo através do setor privado, com concessões e parcerias com taxas de
retorno adequadas e descentralizá-lo para obter um efeito mais rápido e
generalizado, como parece ser a atual tentativa de cooptação dos Estados e dos
municípios.
Por
Antonio Delfim Netto - professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda,
Agricultura e Planejamento.
Fonte: Valor Econômico