Sem iniciar este assunto com a
clássica alusão à ética de resultados mencionada por Max Webber ou citar
Nicolau Maquiavel, tão assertivo no afirmar que ao príncipe todos os meios
estão justificados pela nobreza dos fins, certo é que a aprovação da emenda à
constituição americana que aboliu a escravatura na mais festejada democracia do
Planeta (refiro-me à Décima Terceira Emenda, de 1865), sob a presidência de
Abraham Lincoln, deu-se em circunstâncias verdadeiramente peculiares.
Preocupado em manter a União,
consolidando-a, além de construir uma grande nação para o futuro, enfrentava
ele a feroz hostilidade da rural e escravocrata bancada oposicionista
(Democratas) e assistia, com tristeza, algumas defecções no seu próprio
partido, o Republicano.
Na Casa dos Representantes,
portanto, o prognóstico era o mais sombrio: derrota inevitável, com a rejeição
da emenda libertária e manutenção da monstruosa chaga do cativeiro negro.
Paralelamente a esse monumental
esforço de construção social, o “Pai Abe” – assim o tratavam, carinhosamente,
seus compatriotas --, formulador com voo de águia, que planejava para grandes
distâncias e futuro remoto, vivia o terrível drama da guerra civil, separatista,
a secessão.
Duas gigantescas batalhas,
travadas em distintas arenas: a política e a militar (nesta, discutia,
pessoalmente, estratégias de combate com o General Ulysses Grant).
Ambas as frentes mostravam-se bem
do tamanho da grandeza de alma e de caráter do desafiado. O tema é agora
oportuno, não apenas pela notabilidade da recente obra cinematográfica Lincoln,
que permite a todo povo um imediato e fácil vislumbre dessa tragédia, fechada
com a pistola Derringer, calibre 44, de John Wilkes Booth, que o assassinou no
Teatro Ford, mas também pelas intrigantes coincidências com supostas cooptações
de votos no Parlamento do Brasil, que resultaram na aprovação da Emenda da
Reeleição (governo Fernando Henrique Cardoso) e também no mais recente e celebérrimo
julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), denominado caso “mensalão”, cujo
escopo seria a aprovação de reformas sociais de profundidade e de combate à
desigualdade (governo Lula).
Na saga americana, o então
Secretário de Estado de Lincoln, William Henry Seward (um híbrido de Chanceler
e Chefe da Casa Civil), persuadido da obstinação presidencial quanto à causa
abolicionista e da isonomia, e ciente da derrota iminente no parlamento,
aconselhou-o a não se expor tanto na tarefa de conquistar votos parlamentares,
missão delicada e que reputava erosiva à imagem do governante.
É que no colegiado-alvo havia de
tudo, desde patriotas sinceros e honestos a reles interesseiros,
aproveitadores, autocratas empedernidos, caracteres corrompidos e conservadores
extremados.
Afinal, o parlamento é a projeção
fiel da sociedade que o elege, não é mesmo? Daí a utilização do concurso
habilidoso - mas não escrupuloso – de certo personagem de fora do governo, para
a abordagem dos deputados americanos. Argumentos de persuasão? Todos foram
usados.
Rigorosamente todos, sem
exceção... Do oferecimento de cargos públicos a vantagens materiais mais
tácteis, todos os empenhos, publicáveis ou não, foram feitos para aprovar a
emenda que varreria o horror da escravidão do território americano. O cenário
não é mesmo sugestivo e intrigante?
A emenda foi aprovada, a
escravidão erradicada, para sempre, e a guerra de secessão, vencida, restando
íntegra a unidade da Federação americana. Método de ação governamental passível
de censura, mas eficaz, a se contrapor à necessária ética da governabilidade,
nem sempre suficiente, tudo com vistas à consecução do objetivo de realizar o
bem comum e preservar os superiores interesses da coletividade: eis aí um
enorme dilema político posto aos que governam.
Submeta-se agora, em exercício de
ficção, esse longo e intrincado processo que extinguiu a escravidão e a guerra
separatista na nação americana - tal como lá foi realmente operado -, a
julgamento criminal no Brasil de hoje. Seriam aqueles construtores da nação
ianque também condenados como bandoleiros ou quadrilheiros comuns, salteadores
e falsários (exatamente iguais àqueles que nas ruas rapinam por mera cupidez),
como cá está a ocorrer?
Que juízo disso fariam os
críticos assépticos, descompromissados das grandes responsabilidades das
decisões coletivas, e os burocratas de gabinetes? E os - sempre implacáveis -
acusadores profissionais, como veriam a questão da tramitação da Emenda 13 da
Constituição Americana?
Nela veriam crimes de meios não
importando os resultados alcançados? Optariam pela possibilidade de perdurar a
escravidão, com suas abjetas consequências, a tudo se sobrepondo a exemplar
condenação dos protagonistas envolvidos naquele processo legislativo? Cabe
refletir.
Por JOSÉ ROBERTO BATOCHIO – WWW.brasil247.com.br