O século XX foi o século da
tentativa de materialização das grandes utopias modernas, confrontando opiniões
e levando, inclusive, a duas grandes guerras de caráter mundial.
Logo nas suas primeiras décadas,
a revolução bolchevique de 1917 passou a embalar o sonho da maioria dos
marxistas, que tiveram a chance de acompanhar a implantação da primeira
experiência mais sólida de um Estado Socialista – pelo menos de acordo com os
conceitos leninistas. Também, a Itália viveu a sua utopia, a de um estado
fascista, influenciando com isto a experiência nazista da Alemanha de Hitler e
de falanges em todo o mundo.
Na América do Norte a burguesia
liberal aprofundou a sociedade de mercado, levando-a a um plano inimaginável,
com novos produtos, novas organizações para o trabalho (divulgado por
Hollywood, o modo de vida americano passou a ser invejado por muitos). Na
China, numa grande guerra civil, chocaram-se as forças e as ideias de Mao e do
Kuumitang, e, mesmo os japoneses, não ficaram imunes a esse movimento global, e
tentaram aprofundar o seu grande sonho: o de um grande Japão, estendendo-se por
toda a Ásia.
No intervalo das duas grandes
guerras viveu-se um período de grandes efervescências que se materializou
através de uma arte revolucionaria e de militantes inquietos e sonhadores.
Revoluções explodiam em todo planeta, e aqui no Brasil, as ideias tenentistas e
da semana de 22 asfaltavam as estradas que levariam à revolução de 30.
John Reed foi um desses
revolucionários que procurou viver plenamente esse clima do século XX; daqueles
que tinha como projeto de vida a realização de suas utopias.
Trata-se de um tipo de personagem
heroico, que poderíamos encontrar nos romances de Érico Verissimo (como o
personagem Vasco, por exemplo ), que são capazes de abandonar tudo e participar
de uma guerra civil em um país distante, como a Guerra Civil da Espanha, para
defender seus ideais.
Americano de Portland, filho de
uma familia de posses, formou-se em Havard , um centro do pensamento
conservador americano, mas, para a loucura de seus mestres, não seguiu o
caminho tradicional dos filhos da burguesia. Reed viveu a sua curta e intensa
vida no bairro boêmio de Village, em New York, nas primeiras décadas do século
XX, rodeado de intelectuais, artistas e revolucionários, destacando-se como um
dos mais brilhantes jornalistas do inicio daquele século.
Um jornalista que colocou como
objetivo de vida engajar-se nos movimentos sociais, dando voz aos oprimidos
pelo capital .
Amigo de Emma Goldman, importante
ativista anarquista daqueles tempos, e de líderes sindicais do movimento
socialista americano, sempre se colocou ao lado dos mais fracos, colocando o
seu talento literário à serviço das causas operárias,fazendo a cobertura
jornalística das greves e dos confrontos com os patrões.
Jornalista, por escolha, e
defensor de ideias libertárias foi capaz de ver na Revolução Mexicana de 1912
um grande acontecimento popular, cobrindo-a com o risco da própria vida,
chegando, inclusive, a fazer uma histórica entrevista com Pancho Villa, um dos
líderes da revolução camponesa, de quem se tornou amigo.
Por suas ideias e atitudes
contestatórias, John Reed foi perseguido e discriminado na grande imprensa
americana, e, por isso, torna-se de grande valor o filme produzido em
Hollywood, de 1981,que tenta retratar alguns momentos de sua vida. Uma obra,
reproduzida em DVD, com fácil acesso nas locadoras.
Talvez, pelo caráter romântico e
aventureiro que ela teve e pelo grande romance que viveu com feminista Louise
Bryant, sua companheira até a data do seu falecimento, essa produção centra-se
mais no romance das suas vidas em comum, colocando em segundo plano a sua
extensa e intensa obra de militante de esquerda, no país mais importante do
capitalismo.
Mas, a produção, dirigida por
Warren Beatty, que faz também o papel de Jonh Reed, tendo a participação de
Diane Hall (também Diane Keaton), no papel de Louise Bryant, Jack Nicholson
interpretando Eugene O’Neill e Edward Herrmann, como Max Eastman, ao trazer à
tona esta época, dos primórdios da modernização capitalista, o faz com intenso
realismo, mostrando uma face das utopias do movimento operário que se perdeu na
sociedade de consumo contemporânea e que merece a nossa reflexão, que vai além
do filme em questão.
Além de outras importantes obras,
John Reed escreveu um dos mais empolgantes livros sobre a Revolução Soviética:
“Os 10 Dias Que Abalaram o Mundo”, uma obra prima, que descreve com um intenso
realismo o evento social mais espetacular do ultimo século – a grande revolução
capitaneada pelos bolcheviques e pelo seu líder, Lênin.
Em um momento que estava
acompanhando a guerra na Europa, fazendo artigos para a impresa americana, ao
saber da deposição do Tzar Nicollau, decidiu que iria cobrir aquele confuso
movimento político, pois,anteviu a grande importância histórica que ele
representava:a revolução bolchevique teve ,então, um espectador estrangeiro à
sua altura, pois, Reed não se contentou em fazer uma cobertura superficial e
midiática. Tomando um lado da história, foi capaz de traduzir fielmente aqueles
intrincados acontecimentos, que iriam ter uma importância sem precedentes na
história moderna da humanidade.
Em certa parte do livro, Reed, ao
se referir aos eventos revolucionários que assistiu, nos fala com propriedade:
“há dias que valem por cem anos”, nos dizendo que a história não se movimenta
de maneira continua e linear. Existem alguns momentos em que são tomadas
attitudes que alteram o curso dos acontecimentos de tal forma que, na sua
intensidade, nos projetam para um futuro que antes nos parecia impossível.
De um momento para o outro,
forças sociais poderosas tinham se posto em movimento na velha Rússia tzarista,
chocando-se com uma realidade até então considerada imutável, colocando abaixo
o velho regime e trazendo à tona personagens que estavam no mais baixo limiar
da sociedade, os mais excluídos, os considerados como a escória, a corja
social.
Traziam com eles a utopia de uma
nova forma de viver e de se relacionar, sem a inteferência do capital e da
exploração do homem pelo homem. E, Reed percebeu que, naquela hora, Lênin e
seus companheiros bolcheviques, eram a força política que mais se identificava
com esses anseios.
Em certo momento, quando assistia
o evento histórico do II Congresso Pam Russo dos Sovietes dos Deputados
Operários e Soldados, às vésperas da invasão do Palácio de Inverno, e início da
deposição de Kerenchi,Reed atenta para a exclamação feita por uma das
recepcionistas do Congresso, mostrando-nos que em poucos meses mudara a
correlação das forças políticas na Rússia e os bolcheviques,antes minoria,
passavam a comandar o processo revolucionário :
” A moça encarregada do serviço,
membro do grupo de Plekhânov,sorria desdenhosamente .
- Não se parecem nada com os
delegados do primeiro congresso ( ela se referia ao Congesso de meses atrás,
onde os mencheviques e cadetes tinham a maioria) – disse-me ela:- Vejam que
fisionomias abrutalhadas e que expressões de ignorância! Que gente inculta !
E não se enganava. A Rússia havia
sido sacudida até as entranhas.Os que se achavam nas maiores profundidades é
que estavam vindo à superfície “.
A acuidade política de Reed,
adquirida nas lutas operárias de que participou nos Estados Unidos, permitiu a ele
perceber para onde se inclinava a maré revolucionária e entender a postura
intransigente e determinada dos bolcheviques, que confiando nos desejos da
classe trabalhadora, foram capazes de derrubar o governo provisório de Kerenchi
e avançar, sem perder o rumo, para uma nova etapa da Revolução Russa:a
implantação de um governo soviético, dirigido pelo partido que tinha Lenin como
líder.
Assim se refere Reed as
características desse líder singular , quando o viu chegar ao Congresso dos
Sovietes : ” Uma silhueta baixa.Cabeça redonda e calva,mergulhada entre os
ombros.Olhos pequenos,nariz rombudo,boca larga e generosa.Mandíbula
pesada.Estava completamente barbeado.Mas a sua barba,dantes tão conhecida e que
daquele momento em diante iria ser eterna, já começava a despontar novamente.O
casaco estava poído; as calças eram compridas demais. Sua aparência física não
indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões . Mas foi querido e
venerado como poucos chefes em roda a história. Um estranho chefe popular.Chefe
só pelo poder do espírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e
sempre em destaque, sem a menor particularidade interessante, mas possuindo, em
alto grau , a capacidade de explicar ideias profundas em termos simples e de
analisar concretamente as situações .Senhor de prodigiosa audácia intelectual,
assim era Lênin. “
Lênin, sem dúvidas, se situa no
mais alto patamar histórico pela sua genialidade na compreensão da sociedade
russa e das características da mundo em que viveu, traçando uma estratégia
admiravel para a tomada do poder politico.
Seus livros foram todos escritos
no fragor da luta poltica e cada um deles se insere numa realidade peculiar da
conjuntura da Russia pré revolucionária e revolucionária. Não são devaneios
intelectuais, pois estão presos, no geral, ao desejo de uma prática imediata.
Sua obstinação e rigidez teórica o fez transformar um pequeno partido, nascido
da cisão da social democracia russa, na vanguarda revolucionária de um evento
social que movimentou milhões de pessoas.
Reed teve a sorte de estar ali,
naquele momento, podendo conviver com uma figura tão importante. Pode, também,
ouvir os discursos dos mais destacados líderes dos diversos partidos, que
fizeram parte daqueles dias que mudaram a história do mundo. Entrevistou
pessoas das mais diversas correntes, tanto da esquerda como da direita. Sentiu
a profundidade da esperança que moveu milhões de pessoas na busca da construção
de um outro tipo de sociedade, sem a exploração do homem pelo homem.E, cumpriu
o seu papel:seu livro, fruto da sua participação naqueles eventos, tornou-se no
maior documento sobre a Revolução Russa.
Seu valor literário é indiscutíve
e mais de dezenove edições foram feitas em todo o mundo. Lênin e Krúpscaia
fizeram, inclusive, questão de prefaciar sua primeira edição em solo russo.
Também, em nome do Partido Comunista, em 1957, foi feito um posfácio a uma
edição russa, onde claramente vemos que o seu propósito é afirmar conceitos
sobre a luta que se sucedeu após a morte de Lênin, onde Stalin fez o expurgo de
lideres bolcheviques que Reed cita no seu livro, tais como Trostski, Zinoviev e Kamenev,
demonstrando a importância da obra desse jornalista americano.
O posfácio faz
menção ao pensamento de Trotsky de revolução permanente, de que ela deveria
avançar para a Europa (ele propunha a formação de uma Federação Soviética
Europeia) e do seu oposto, o da construção do socialismo em um só país ( o que
acabou prevalecendo, sob a ótica de Stalin).
Após retornar a Rússia, depois de
passar um período nos E.Unidos, Reed faleceu, recebendo então honras de estado,
como um herói do povo soviético,sendo enterrado na Praça Vermelha, ao lado do
túmulo de Lênin.Uma justa homenagem pelo amor que ele tinha a Revolução Russa.
Hoje, a utopia de Jonh Reed, o
Estado Soviético, não existe mais- foi vencida pela utopia da sociedade do
livre mercado:aquilo que Guy Debod chamou de “Espetáculo Integrado”.
Não conseguiram os bolcheviques
construir a sociedade almejada pela utopia socialista.
Golpeados pelo fetiche da
mercadoria, tranformaram-se em administradores de um capialismo de Estado. Fora
incapazes de perceber que os sujeitos sociais que são construídos pelo mesmo
desenvolvimento capitalista, como a “classe burguesa” ou a “classe proletária”,
não podem ser os agentes da emancipação, pois não deixam de ser sujeitos
capitalistas. Não são formas que existem para além da formação capitalista,
como se ela exercesse um domínio exterior; não são formas as quais se podem
mobilizar contra um capitalismo que somente ocuparia uma parte da sociedade.
Não procuraram, então, avançar
para além da sociedade da mercadoria, sem o trabalho abstrato e do valor,
abolindo esta cruel intermediação que impede o homem de atingir a sua plenitude
como ser integrado no universo.
Entraram numa competição com seus
concorrentes ocidentais de que modelo social que administravam poderia fazer o
melhor bem de consumo, ou mesmo, as melhores armas de destruição em massa,
agredindo de forma sem prescedentes o meio ambiente.
Através de um estado capturado
pela burocracia comandaram, com a estrutura da terceira internacional, um
processo de lutas operárias em todo o mundo, que só serviu para avalisar o
capitalismo, dando a ele uma face social, adquirida nas negociações com os
sindicatos.
Num mundo com diversos matizes de
capitalismos socializantes, a classe operária vai, então, ao paraíso, onde
todos os seres humanos, no mundo globalizado são meros consumidores,
transformando-se em reféns das crises cíclicas do capitalismo, que acabou pondo
por terra o Estado da revolução de outubro, por ser anacrônico na ordem
capitalista.
A forma inquieta e revolucionária
de Jonh Reed expressa no seu íntimo o sentido de liberdade que todos os seres
humanos possuem e que não morreu com o desenvolvimento do Estado Sovietico. Ele
esteve e estará presente no espírito das barricadas da revolução de outubro,
como esteve na Comuna de Paris, ou em tantos eventos em que o povo foi às ruas
lutar por suas utopias.
Fonte: Por Arlindenor Pedro - professor de
história,funcionário público e especialista em Projetos Educacionais.Anistiado
por sua oposição ao Regime Militar, atualmente dedica-se à produção de flores
tropicais na Região das Agulhas Negras.