O lixo urbano
irregularmente lançado ou disposto tem sido apontado por um sem número de vozes
como o responsável maior pelas enchentes. Essa tese tem sido insistentemente
sustentada por autoridades públicas, com acrítica aceitação por boa parte da
mídia e, pasmem, pela própria população de nossas cidades.
No entanto,
como veremos, é uma tese perigosa e equivocada que, ao espertamente jogar à
população, por conseqüência de uma sua eventual falta de educação, a culpa
pelas enchentes, desvia o foco das atenções, subtrai a importância das
verdadeiras maiores causas e alivia a responsabilidade dos seguidos governos
que não as atacam devidamente.
As enchentes
urbanas são explicadas pelo incrível aumento do volume de águas de chuva que
aflui, em tempos sucessivamente menores, para um sistema de drenagem (córregos,
rios, bueiros, galerias, canais…) progressivamente incapaz de lhe dar a devida
vazão.
Esse aumento
do volume de água e a redução do tempo em que chega às drenagens são promovidos
essencialmente pela impermeabilização do solo urbano e pela cultura de
canalização e retificação de drenagens naturais.
Como um
enorme agravante a esse quadro, considere-se ainda o fantástico grau de
assoreamento dessas drenagens por sedimentos provenientes dos intensos processos
erosivos que ocorrem particularmente nas faixas periféricas de expansão da
cidade. Esse assoreamento acaba por reduzir ainda mais a já comprometida
capacidade de vazão de toda a rede drenagem.
Ou se ataca
essa questão, através de medidas que recuperem ao máximo a capacidade da cidade
em reter as águas de chuva, seja por infiltração, seja por acumulação (pequenos
reservatórios domésticos e empresariais, calçadas, valetas e pátios drenantes,
bosques florestados e arborização intensa, etc,) e combatam a erosão em sua
origem, ou nunca nos livraremos do flagelo das enchentes. As bilionárias obras
de alargamento e aprofundamento das calhas de nossos rios principais são
necessárias, mas a realidade mostra que são insuficientes e já se aproximam de
seu limite de benefícios.
O lixo? Claro
que o lixo é um fator complicante, e seu lançamento irregular deve ser
combatido de todas as formas. Mas seus efeitos principais são para um tipo de
enchente muito localizado, junto às proximidades de um bueiro obstruído ou em
uma situação que exija o funcionamento de bombas de sucção, por exemplo. Vejam
que nas cenas televisadas de enchentes é muito mais comum ver-se água jorrando
dos bueiros e bocas de lobo do que sendo impedida de entrar. Essas águas que
jorram são o retorno das águas para as quais as galerias e córregos não
conseguem dar a devida vazão.
Por outro
lado, é importante considerar que do volume total do material de assoreamento
das drenagens 90% são constituídos por sedimentos provenientes dos processos
erosivos nas frentes de expansão das cidades, e apenas 10% são constituídos por
lixo urbano e entulho de construção civil.
Note-se ainda
que muito provavelmente apenas uma pequena parte do lixo disperso nas drenagens
da cidade seria proveniente do ato deseducado de se lançá-lo irregularmente, há
problemas ainda bem sérios de deficiências de recolhimento do lixo doméstico,
especialmente em áreas habitacionais irregulares de baixa renda.
Enfim, o
sucesso de um programa de combate às enchentes exige, antes de mais nada, a
compreensão exata de toda a dinâmica causal do
fenômeno, assim como a corajosa decisão das autoridades públicas e
privadas em assumir suas intrínsecas responsabilidades. O que não condiz com a
comodidade de se jogar às costas da população a culpa pelos problemas.
Texto de Álvaro Rodrigues dos Santos *
*Geólogo, ex-diretor de
Planejamento e Gestão do IPT e ex-diretor da Divisão de Geologia. Autor dos
livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande
Barreira da Serra do Mar”, “Cubatão”, “Diálogos Geológicos” e “Enchentes e
Deslizamentos: Causas e Soluções”. Consultor em Geologia de Engenharia e
Geotecnia, é ganhador do Prêmio Ernesto Pichler da Geologia de Engenharia
brasileira.
Fonte: blog
do Nassif - Viamundo