A economia mundial navega em um
mar de dívidas. Um colossal estudo comparativo da consultoria Mc Kinsey Global
Institute mostrou que, em 2011, a dívida total do Japão –a maior do mundo
desenvolvido – era de cerca de 512% de seu PIB (ou seja, de tudo o que sua
economia produz em um ano. Em segundo lugar, estava o Reino Unido com 507%. Os
Estados Unidos tinham “apenas” 279%.
Esta dívida total é uma soma das
dívidas estatal, estadual ou municipal, individual, hipotecária, corporativa,
financeira e bancária. Com esses percentuais a impressão era de que a nave
poderia naufragar a qualquer momento ou se despedaçar contra o muro do
impagável. Muitos economistas opinam que esta gigantesca desproporção entre a
riqueza anual de um país e sua dívida se explica por um mecanismo que nas
últimas três décadas mudou a face do capitalismo atual: a financeirização.
“A financeirização explica o
crescimento do crédito na década de 2000 e as causas da crise atual. No centro
da mesma está a crescente importância de atores e instituições financeiras na
economia e das finanças como fonte de lucros”, disse à Carta Maior Adam Leaver,
pesquisador e membro do Centro de Investigação da Mudança Sócio-Cultural, de
Manchester.
No capitalismo das últimas três
décadas se produz uma explosão daquilo que, em inglês, é denominado pela sigla
FIRE (Financiamento, seguro e setor imobiliário) que cresceu tanto em relação
ao PIB como em detrimento da economia produtiva. Na América Latina este FIRE se
encontra potencializado pela falta de regulação e competição. Se tomamos como
exemplo o recente balanço anual do banco espanhol Santander podemos que ver que
Brasil e Chile garantem lucros infinitamente superiores aos de países
desenvolvidos.
“O Brasil, por exemplo,
representa 15% dos ativos do Santander, ou seja, seus empréstimos para consumo,
empresas, etc., representam cerca de 30% de seus rendimentos mundiais. Em
países como o Reino Unido a relação é inversa. A falta de regulação e
competição permite aos bancos obter lucros absurdamente altos”, disse à Carta
Maior Gabriel Palma, catedrático de Economia comparada na Universidade de
Cambridge.
Dito de outro modo, os lucros não
se devem a uma meritória competitividade da América Latina em termos de
qualidade, serviço e eficiência, mas sim a falhas do sistema regulatório em que
operam.
A roleta
A financeirização se dissemina por toda a economia reforçando o lucro
de curto prazo e especulativo sobre o setor produtivo. As grandes corporações
têm ramos financeiros que, com frequência, geram mais lucros do que aquilo que
as empresas produzem e vendem. Nos Estados Unidos, a General Motors passou a ganhar
mais com o fornecimento de créditos para a aquisição de automóveis do que com a
venda mesma de veículos.
“As empresas do setor real,
produtivo, começam a se comportar como empresas financeiras. Isso é claro no
caso da própria General Motors que tinha uma empresa de venda de hipotecas de
casas. Alguém pode argumentar que emprestar dinheiro para que se compre
automóveis esta de acordo com a lógica produtiva: ao ajudar o financiamento do
cliente, ajudo a venda do automóvel que produzo. Mas, investir no mercado
hipotecário, é outra coisa. Funciona como substituto de um investimento
produtivo para obter um lucro de curto prazo. É um claro sinal de como a
financeirização afeta o investimento e a mudança tecnológica”, indicou Gabriel
Palma.
Em nível individual, o símbolo
mais cotidiano desta financeirização é o cartão de crédito que antes dos anos
80 era tratado com reverência de clube exclusivo e hoje se converteu em um meio
de pagamento da vida diária. Mas a explosão do crédito vai muito além do
cartão. No estouro financeiro de 2008, a gota que fez transbordar o copo de uma
economia endividada até o último fio de cabelo foi o empréstimo hipotecário
para famílias sem recursos: as chamadas hipotecas sub-prime de alto risco.
Os estudos sobre o período do boom
mostram que nos Estados Unidos as famílias passaram a gastar no pagamento de
juros de cartões de crédito e empréstimos quase o dobro do que gastavam em
comida e roupas. No Reino Unido, a dívida individual ou familiar chegou a ser
165% da receita disponível (renda que fica depois do pagamento de impostos).
Segundo Paolo dos Santos, especialista bancário de SOAS, da Universidade de
Londres, essa mudança veio junto com a retirada do Estado benfeitor como
garantidor da saúde, educação, moradia e aposentadoria, que foi funcional para
a expansão do sistema financeiro.
“Nos últimos 30 anos, a política
social em muitos países desenvolvidos se baseou na transferência do risco e do
custo desses serviços sociais do Estado para o indivíduo. Este tem que recorrer
ao sistema bancário para poder financiar a educação de seu filho ou seu seguro
de saúde ou sua aposentadoria”, assinalou Dos Santos à BBC.
Brasil na mira
Um informe recente da Federação de Comércio de São Paulo mostra que a
taxa de juro média paga pelos brasileiros é de 230% ano. O cálculo é que o
serviço da dívida individual brasileira será de 30% da receita disponível este
ano. Nos Estados Unidos, se considera que quando a dívida alcança 14% a
situação é de alto risco.
O Brasil não é um caso isolado, O
Chile o segue de perto. No Peru, o crédito quadruplicou nos últimos cinco anos.
No México, o nível de inadimplência no pagamento de microfinanciamento do
consumo se situa entre 20 e 30%. A Argentina é um caso peculiar. A crise de
2001 e o brutal descrédito do sistema bancário teve um paradoxal efeito
neutralizador desta financeirização que havia arrasado com a economia nos anos
90. Enquanto que, na América Latina, a média hoje de crédito fornecido pelo
setor bancário em relação ao PIB é de 67%, na Argentina é de 29%. Em
comparação, no Brasil esse índice é de 98%. No Chile é de 90% e no México de
45%.
“O crédito azeita a economia, mas
um excesso de dívida nas famílias se traduz em estancamento do consumo. Na
América Latina o problema não é o montante da dívida, mas sim seu serviço pelas
condições leoninas que muitas linhas de crédito apresentam. Esta
financeirização tem um impacto no investimento. É mais negócio ganhar com um
produto financeiro do que investir na economia real. Uma parte importante da
elite industrial de São Paulo abandonou a produção pelas finanças”, disse Palma
à Carta Maior.
Texto de Marcelo Justo - Londres, Tradução: Katarina Peixoto