Há exatos
dez anos, em 27/10/2002, o ex-metalúrgico Luis Inácio Lula da Silva foi eleito
presidente da república. Era a primeira vez que o PT chegava ao comando do
país, carregando consigo uma enorme expectativa de mudança na cultura política
brasileira e de transformações sociais profundas. Um balanço do que isso
significou, e do que aconteceu no país nos dez anos que se seguiram, obviamente
é impossível de realizar num post, e merecerá anos de estudos e reflexões da
parte de inúmeras pessoas. No entanto, alguns breves comentários, destinados a
estimular o debate, podem ser feitos:
a) o PT no governo (no poder?) parece
ter aberto mão de uma de suas bandeiras fundantes, que era a construção de uma
sociedade socialista. Talvez já tivesse aberto mão dela antes, no congresso de
1995, quando venceram as teses que tornariam o partido uma máquina eleitoral
altamente competitiva, voltada a ocupar uma faixa mais ao centro do espectro
político e a conquistar setores da sociedade e do eleitorado que desde a década
de 1980 eram tracionalmente refratários à legenda;
b) o PT no comando do país passou a ter
dificuldades, especialmente após a eclosão do escândalo do mensalão, em 2005,
de continuar a sustentar uma de suas outras bandeiras históricas, a da
"ética na política". Seja a versão do "maior escândalo da
História do país", como querem seus adversários, seja a tese do caixa 2
(que "todo mundo faz", segundo célebre entrevista de Lula na época,
concedida em Paris), fato é que o discurso da ética, tal qual o petismo o bradava
nos seus primeiros anos, ficou sensivelmente prejudicado desde então;
c) nos seus dez anos de governo o PT
não conseguiu, como tantos de nós imaginávamos, romper com a dependência que
qualquer partido que vá ocupar o Palácio do Planalto tem de ter em relação a
alguns dos mais tradicionais pólos do sistema político brasileiro. Que o digam
as alianças com pequenos partidos de direita no primeiro mandato de Lula ou com
a formidável estrutura que é o PMDB, a partir do segundo mandato. De mais a
mais não se cortou laços com alguns dos mais poderosos setores da vida
brasileira, como o agronegócio, as igrejas, a grande indústria multinacional e
o sistema financeiro; pelo contrário, dado o caráter conservador e
conciliatório do governo petista, tirando o consórcio PSDB/DEM/PPS e a revista
Veja, só não aderiu ao petismo quem não quis.
d) no campo internacional notadamente
houve sensíveis diferenças em relação ao governo anterior. Uma política externa
arrojada, levando a tiracolo a burguesia nacional, permitiu ao país aprofundar
e diversificar relações comerciais com os quatro cantos do mundo, o que,
diga-se de passagem, foi de fundamental importância para a superação dos
efeitos (até o momento relativamente leves por aqui) da crise econômica mundial
que eclodiu em 2008 no centro do sistema e se arrasta até os dias de hoje.
Aprofundou-se as relações do país com a China, a África e o Leste Europeu. E
priorizou-se o estreitamento de laços com a América do Sul, entendida como
nossa casa e nosso lugar no mundo, num tempo de multipolaridade econômica e
política onde o planeta se divide em grandes blocos regionais. E apenas um
dado, a título de curiosidade, para demonstrar a mudança na política externa
brasileira em relação à anterior, que priorizava os EUA e a Europa Ocidental:
Lula foi o segundo mandatário brasilero a visitar um país de posição
geopolítica estratégica no Oriente Médio, e que tem conosco laços históricos
relativos à imigração, que é o Líbano. Antes dele, só Dom Pedro II, em 1876.
e) mas talvez a transformação mais
profunda, que tem a ver com a conversão do partido ao centro, tenham sido, de
fato, as políticas sociais destinadas a incorporar milhões de brasileiros
pobres ao mercado de consumo. Se, via consumo, estes brasileiros estão sendo ou
não incorporados à cidadania e aos direitos, aí já é uma outra história. No
entanto, como gosto de brincar com meus amigos petistas e tucanos, e também com
meus alunos, talvez Lula tenha sido o melhor administrador que o capitalismo
brasileiro já teve. Ou, radicalizando a provocação, talvez Lula tenha mesmo
trazido o capitalismo para o Brasil. Óbvio que desde que o primeiro europeu
atracou nestas terras e resolveu explorar suas riquezas que o Brasil (que nem
era Brasil à época) se incorporou ao sistema-mundo capitalista. Que não se
tenha ilusões em relação a qualquer coisa diferente disto. Mas bem ou mal,
trazendo milhões de pessoas para o consumo, o governo petista começou a romper
com aquele "capitalismo de castas", aquele "feudalismo à
brasileira" que sempre vivemos. Algumas reações da antiga classe média, e
mesmo de setores tradicionais da elite econômica, expressas no cotidiano,
parecem ser uma evidência de que o país jamais viveu, como tem vivido nestes
dez anos, um processo tão pronunciado de mobilidade social e de redefinição das
posições de status dentro de sua sociedade. Quem nunca ouviu, vindo de gente da
classe média tradicional, muxoxos como "hoje em dia aeroporto parece
rodoviária", "agora empregada não quer mais ganhar salário
mínimo" ou ainda "o trânsito das cidades está ruim desse jeito porque
hoje em dia até pobre pode comprar carro"? Pois é. Não deixa de ser
hilário. Gente que em suas viagens ao exterior se encanta, p ex, com a pujança
da economia dos EUA e com o tamanho da classe média estado-unidense mas que de
volta ao país se irrita com a diarista que não quer mais ser diarista e sonha
em fazer faculdade.
f) fato é que as políticas sociais de
Lula e a conversão do PT ao centro do espectro político provocaram outras
conseqüências: Lula não só converteu-se (como talvez já fosse, antes mesmo de
ser eleito) na referência fundamental do sistema político brasileiro, como a
oposição foi sensivelmente afetada nestes dez anos. Não apenas ficou sem
discurso como viu seu espaço político e ideológico cada vez mais reduzido à
direita.
Claro que os
pontos acima destacados referem-se a apenas alguns aspectos, desenvolvidos de
forma sumaríssima, deste complexo e curioso período da História brasileira.
Muito tutano e muita saliva ainda terão de ser gastos para que possamos ter uma
compreensão mais apurada do que tem sido ou do que foram estes dez anos de PT
no governo. Mas fica ai uma breve contribuição, um singelo pontapé inicial para
o debate.
Autor do
texto Wagner Iglecias - é doutor em
Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.