A primeira
imagem que guardei da primeira eleição para presidente do Brasil pós-ditadura
foi a de um vizinho chegando em casa com uma pilha até o pescoço de vídeos em
VHS. Era uma espécie de estoque de alimentos para as horas de propaganda
eleitoral gratuita recém-iniciada e considerada maçante por quem não se sentia
minimamente empolgado em dar seu primeiro voto a um candidato à Presidência
após quase 30 anos de repressão.
A vida
pública, para o meu vizinho, não inspirava interesse. Ele estava bem, morava
numa bela casa, tinha dois belos filhos, viajava constantemente, tinha carro do
ano, televisão de última geração e, como todo mundo daquela época, estava mais
empolgado com as novidades tecnológicas (a principal inovação era o microondas)
do que com mudanças no rumo das coisas. Para ele, como para muitos daquela rua,
daquela cidade, daquele país, não era hora de mudar. O melhor dos mundos,
aliás, era o mundo imutável.
A imagem
deste meu vizinho me veio à cabeça na quinta-feira 3 quando deixei a sessão de
cinema. Acabava de assistir “No”, filme do diretor Pablo Larrain sobre o
plebiscito de 1988 que definiu o futuro do ditador Augusto Pinochet no Chile.
No poder desde o golpe de 1973, general havia convocado, por pressão
internacional, um referendo para que a população chilena dissesse se ele deveria
ficar ou não mais oito anos no governo. A oposição, pela primeira vez, teria
quinze minutos diários, durante cerca de um mês de campanha, para convencer os
chilenos de que era preciso dizer “não” à continuidade da ditadura. O governo,
que via na eleição apenas um protocolo para legitimar seus desmandos,
precisaria convencer os eleitores de que tudo estava bem, obrigado.
Se saltasse
do Chile de 88, quando ocorreu o plebiscito, e aportasse na minha vizinhança em
89, correria o risco de tomar um choque térmico. A mobilização popular do
plebiscito chileno em nada lembrava a apatia da classe média de minha cidade
que preferia deixar o salário numa locadora de vídeo para não se envolver num
processo político do qual desdenhava. (Ninguém dali precisava debater nada
porque ninguém estava disposto a mudar a posição: votar em qualquer candidato
que não fosse o Lula).
Mas, fora da
minha rua, numa cidade afastada dos grandes centros, o Brasil de 89 não era tão
diferente do Chile de 88. Eram países vizinhos que vinham de anos de ditadura
comandada por militares – no caso do Brasil, numa transição mambembe – com um
saldo de mortos e desaparecidos políticos dos anos pós-golpe. Eram países,
sobretudo, amedrontados. Convencer o eleitor a sair de casa e se mobilizar por
um futuro distinto do passado sangrento era missão inglória: poucos sabiam como
usar a liberdade dos minutos garantidos pela propaganda eleitoral para
convencer alguém a mudar os rumos da história recente.
Ao retratar o
grupo responsável pela campanha anti-Pinochet, muitos dilemas são colocados à
mesa. A mensagem de Pinochet era clara. Numa das cenas, o idealizador da
campanha governista diz ser necessário mostrar como o ditador havia conseguido
modernizar o país e afastá-lo do projeto socialista de Salvador Allende, o
presidente morto e deposto no golpe de 73. A ideia, explica o publicitário, era
mostrar que no Chile de Pinochet qualquer um poderia enriquecer. E ressalta:
“’Qualquer um’ não significa ‘todos’. As pessoas querem acreditar que elas
podem ser este ‘qualquer um’”. Apostava, portanto, numa discussão entre
“socialismo do passado” versus “capitalismo do futuro” para manter o poder.
Do outro
lado, o desafio dos opositores, assumido pelo publicitário René Saavedra,
personagem de Gael Garcia Bernal, era não assustar demais o público, o grande
público que demonstrava cansaço de tanto sangue derramado e preferia levar uma
vida medíocre, sem liberdade, a verem os filhos, as casas e os poucos bens em
riscos diante de uma possível comoção nacional.
É uma aula
sobre como vender uma ideia. E sobre como esse processo envolve desgastes tais
quais convencer a velha guarda da esquerda chilena, traumatizada pelo terror de
Estado, de que o revide poderia ser dado com uma mensagem leve, alegre, sem o
uso exagerado de imagens da tragédia recente. (A primeira ideia da campanha era
mostrar corpos estilhaçados pelos soldados de Pinochet do golpe em diante).
Vinte e cinco
anos após a campanha, o filme provocou reações diversas pelo Chile, como
mostrou recentemente o site Opera Mundi. Quem participou da campanha reclamou,
por exemplo, do excesso de peso atribuído à televisão para definir o jogo do
plebiscito. Argumentaram que quem fez a ditadura ruir foram as bases sociais –
resultado de um país que crescia para poucos – que se mobilizaram, saíram às
ruas, e lutaram voto por voto. Haveria, portanto, uma disposição real que não
precisava de um jingle bem-feito para se posicionar.
É
verdade.
Mas, como lembra na mesma reportagem o jornalista Patricio Bañados,
âncora do programa anti-Pinochet, também retratado no filme, o programa não
visava apenas levar os eleitores a se posicionar contra a ditadura. Visava
fazê-los perder o medo e sair de casa para votar num processo que consideravam
forjado em benefício do ditador.
Era preciso, para citar o slogan que no Brasil só seria usado muitos
anos depois, fazer com que a esperança vencesse o medo. Daí a arriscada e
bem-sucedida decisão de levar à tela não apenas cenas de mortos, terror e
destruição, mas gente animada, descolada (para os padrões da época) e
bem-humorada.
Essa gente, mostraram os publicitários, não demonstrava pânico em
dizer que novos tempos, novos e melhores tempos, estavam chegando. “A alegria
já vem”, dizia o slogan numa mensagem simples, direta, até reducionista para
alguns – a tortura do passado recente e de quem vivia na censura, afinal, não
tinha nada de alegre. Mas era clara, algo como “saiam para ver o sol”.
Se a mensagem
fosse passada, não haveria como perder a causa, ainda que o referendo
conferisse mais oito anos ao ditador. Porque uns vendiam números sobre a
economia. Outros vendiam algo imensurável: a liberdade. Mais que isso: a
alegria de ser livre.
Na introdução
do livro com suas melhores crônicas no Pasquim, Millôr Fernandes faz um balanço
sobre todas as quedas-de-braço perdidas para os militares no período. No último
parágrafo, concluiu: “Eles só não conseguiram nos tirar uma coisa: nossa
capacidade de levar na esportiva”.
Porque as
armas numa ditadura (ou numa democracia mal ajambrada) não são as mesmas. Como
o Pasquim, a campanha anti-Pinochet precisava de habilidade, a habilidade de
quem consegue arrebentar uma ditadura ao meio sem precisar gastar uma bala. E a
galhofa é o melhor argumento para convencer o grande público de que a
caricatura não retrata apenas o assassino, mas quem leva uma vida compactuada
com os assassinatos. Era preciso dizer, portanto, que o general Augusto
Pinochet era uma piada. Uma piada de mau gosto, mas uma piada.
Entre uma
bandeira e outra, havia (há?) uma massa indisposta a mudar as coisas porque
prefere não se envolver. Prefere alugar filmes para não se chatear com a
propaganda política. Essa apatia não é combatida sem consciência. E a
consciência não prescinde do humor, o humor que, como Millôr, não quer fazer
rir. Quer fazer pensar – isto sim um bombardeio letal.