sábado, 16 de junho de 2012

O milagre econômico holandês


Nos séculos XVI e XVII, a Holanda foi berço do capitalismo comercial e da ciência moderna, e foi a pátria de Grotius, Spinoza, Vermeer, Rembrandt, Huygens e Sawammerdam, entre tantos outros gênios que viveram em Amsterdam, Utrecht ou Leiden, como no caso de Descartes ou Hobbes. Naquele período, a Holanda foi considerada terra por excelência do inconformismo e da liberdade do pensamento. E foi também o lugar onde se deu o primeiro “milagre econômico nacional” da história do capitalismo. Assim mesmo, costuma se dedicar pouca atenção à história real, violenta e descontínua que está por trás desta visão estilizada e idílica da ascensão holandesa, e de sua revolução capitalista.

No século XVI, os Países Baixos eram uma pequena província do Império Habsburgo, de Carlos V e Felipe II, retalhada por rios e canais, e ocupada por uma rede compacta de cidades. Naquele período, suas cidades costeiras funcionaram como um dos entrepostos mercantis do império espanhol, com um comércio de baixo valor agregado e pouco impacto sobre toda a economia da Província. A partir de 1540, entretanto, o pequeno território holandês foi transformado no epicentro geopolítico e militar da guerra entre o Império Espanhol e a França, que começou na Itália, no final do século XV, e se prolongou durante quase todo o século XVI. 

 A partir deste momento, aumentou enormemente a pressão tributária e a opressão política e religiosa dos espanhóis sobre sua província, provocando uma reação cada vez mais violenta, que se transformou em insurreição nacional, a partir de 1572. Seguiram-se 80 anos de resistência e luta, até o reconhecimento espanhol da independência holandesa, na Paz de Vestfália, em 1648. Nestes 80 anos, as Províncias Unidas viveram cercadas e em estado permanente de guerra, dentro do seu próprio território. Em 1585, a situação havia se deteriorado de tal forma que Amsterdam chegou a oferecer a soberania holandesa, aos Reis da França e da Inglaterra, e viveu dois anos como protetorado da Rainha Elizabeth I. 

Mas em 1590, este cenário mudou de forma súbita e radical. Amsterdam centralizou o poder e impôs sua hegemonia dentro da federação, e em seguida fez um enorme esforço fiscal e organizou em poucos anos um dos maiores e mais eficientes exércitos da Europa, iniciando uma ofensiva militar impressionante e vitoriosa que conquistou 43 cidades e 55 fortalezas espanholas, em menos de 10 anos. Em seguida criou um anel protetor de cidades fortificadas e militarizadas, e manteve sua ofensiva até o estabelecimento de uma trégua de 12 anos, com a Espanha, entre 1609 e 1621.

O que chama a atenção é que foi exatamente neste período da ofensiva vitoriosa da revolução que se deu o chamado “milagre econômico holandês”, com o aumento exponencial dos seus gastos e investimentos, do seu comércio de alto valor, da sua indústria e da sua inovação tecnológica, da sua finança e da sua integração econômica nacional. Foram 15 anos de expansão acelerada, e só no final deste período se pode falar de comércio de longa distância, e de império colonial, que começam com a criação da Companhia das Índias Orientais, em 1602. 

 Além disto, foi neste mesmo período que a Holanda completou sua “revolução financeira” com a criação de um mecanismo de financiamento de suas guerras, através de um “motor” revolucionário de multiplicação nacional da riqueza financeira, alimentado pelos seus títulos da dívida pública de longo prazo, negociados na bolsa de valores e transformados na base do sistema de crédito holandês. 


A história segue e é longa, mas se pode tirar algumas lições desta revolução holandesa:

I. Só depois de 1590, a Holanda deixou de ser apenas um dos entrepostos mercantis do Império Espanhol para se transformar numa “economia capitalista”, dos grandes lucros extraordinários, e do comércio de alto valor agregado. 

II. A fronteira da economia nacional holandesa foi criada pelo próprio cerco dos exércitos espanhóis. E dentro deste território sitiado, foi a luta revolucionária e a centralização do poder que deram o primeiro impulso ao milagre capitalista da Holanda.

III. Os economistas heterodoxos costumam dizer que o investimento cria sua própria poupança, mas no caso do modelo holandês se poderia dizer que foi a revolução que criou o seu próprio investimento, público e privado.

IV. Assim mesmo, é interessante observar, que também houve revolução ou guerra nacional no início da expansão de todas as demais grandes potências, como foi o caso de Portugal e Espanha, mas também, da Inglaterra, EUA, Alemanha, Japão, Rússia, ou mesmo da França, e agora também da China.

V.  Por fim, a grande lição de toda esta história é que depois da Holanda, todos os grandes “milagres econômicos” do capitalismo, que se sustentaram no tempo, fizeram parte constitutiva do processo de ascensão das suas Grandes Potências.


José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.