segunda-feira, 11 de abril de 2011

Líbia: uma guerra com nome e sobrenome


Fiquei profundamente impressionado quando era um menino de 11 anos ao ver que meu pai, que era medida, operava dia e noite para salvar as vidas de soldados alemães que tinham ocupado meu país, a Noruega. Eles tinham ficado gravemente feridos por um torpedo que alcançou seu navio quando tentavam desembarcar. Meu pai dizia que o dever supremo de um médico é o de salvar vidas, sem fazer distinção alguma.

Um médico que cura só os amigos e não os inimigos é um participante na guerra ou um cúmplice. Uma organização que protege os civis só de um lado e não os do outro não é humanitária, mas sim beligerante. De modo que não há nada de histórico na Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU. Histórica teria sido uma resolução para proteger os civis em todas as guerras, incluindo uma zona de exclusão aérea sobre Gaza, Bahrein, Paquistão e Afeganistão. Mas no mesmo no dia em que se aprovou a resolução 1973, em 17 de março de 2011, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi tema de manchetes de primeira página ao matar civis no Afeganistão, o que, pelo visto, é uma rotina diária.

O que está ocorrendo agora na Líbia é uma intervenção na qual se apoia uma parte contra a outra. Isso tem um só nome: guerra.

É verdade, o presidente Barack Obama é mais multilateral que George W. Bush. Mas o problema não é quanto são os que decidem, mas sim o que decidem. Também é verdade que a resolução do Conselho de Segurança excluiu a previsão feita por Fidel Castro em 21 de fevereiro de que a OTAN iria ocupar a Líbia.

A maioria e a não aplicação do veto foram claras. Mas o trio anglo-estadunidense-francês representa menos de 500 milhões de pessoas, enquanto que os cinco países que se abstiveram – Brasil, Rússia, China, Índia e Alemanha – constituem quase a metade da humanidade.

Quem ganhar o apoio dos países islâmicos dirigirá o mundo e a OTAN agora está em guerra com quatro deles. O fato de os Estados Unidos colocarem-se em um segundo plano é facilmente explicável. O país está na bancarrota e quer compartilhar os custos econômicos, militares e, sobretudo, políticos. Há objeções no Congresso estadunidense sobre o tema e alguns temem que possa se converter em um atoleiro pior que o do Afeganistão.

Certamente, ninguém deveria ficar simplesmente olhando um regime reprimir seu próprio povo, como fez Kadafi. Todo outro tipo de medida deveria ter sido usada, incluindo a derrubada de aviões por meio de mísseis transportados por navios de guerra. Mas como alguém disse ironicamente na Rádio Nacional Pública dos Estados Unidos “presidente Obama lançou mais mísseis de cruzeiro que todos os outros ganhadores do Prêmio Nobel da Paz juntos” e esses projéteis atingiram todo tipo de alvos existentes, quer estivessem voando, circulando em veículos terrestres ou caminhando.

Um precedente é a ação da OTAN contra a Sérvia, na qual foram usados “todos os meios necessários”, mas sem um mandato do Conselho de Segurança da ONU. Como na Líbia, na Sérvia e no Kosovo o Ocidente fez sua propaganda habitual. O inimigo é reduzido a uma pessoa a odiar, ou seja, a receita usada por Orwell em seu livro “1984”. Milosevic, Hussein, Osama bin Laden e agora Kadafi. Esse trabalho preparatório foi feito também contra Fidel Castro e Hugo Chávez, até agora sem ações posteriores. É um paradoxo que o Ocidente, que produziu a ideia de um contrato social que o povo pode reconsiderar – Rousseau contra Hobbes – concentre-se tanto em uma só pessoa e tão pouco no povo.

Mas as metas na Sérvia eram claras: bombardear as empresas estatais, não as privatizadas, abrir caminho às corporações transnacionais para o controle dos recursos naturais, conseguir instalar essa enorme base militar chamada Camp Bondsteel e apoiar um chamado exército de libertação (UCK) que ostentava antecedentes recorde em matéria horrores. As armas usadas contra a Sérvia incluíram bombas de fragmentação e urânio empobrecido, que é radioativo e causa câncer nesta e nas futuras gerações.

Não sabemos se isso se aplica na guerra contra a Líbia. Não está claro quem são os rebeldes, ainda que não haja dúvida de que se opõem, com razão, fortemente à ditadura de Kadafi. Mas o que é que eles querem mesmo? Supostamente permitirão os investimentos estrangeiros diretos no petróleo e a instalação de uma ou duas bases militares, tanto por gratidão quanto para solidificar a vitória. E os Estados Unidos teriam então, finalmente, o que têm buscado há longo tempo: uma base da OTAN na África.

Na Líbia, talvez haja milhões de pessoas que não gostam de Kadafi, mas há também aqueles que, em troca, gostam muito de algumas de suas realizações. O Ocidente corre o risco de se converter em vítima de sua própria doutrina de “um país, uma pessoa” e cometer mais um duradouro e trágico crime contra a humanidade.

Por: Johan Galtung - professor de Estudos sobre a Paz, e reitor de Transcend, uma organização que promove a paz, o desenvolvimento e o meio ambiente.

Fonte: Carta Maior e http://brasilnicolaci.blogspot.com/