Decreto assinado pelo governador Geraldo Alckmin garante 25% das vagas de hospitais públicos para planos de saúde.
Vamos recapitular.
Tempos atrás, por uma diferença de um voto, o senado brasileiro aboliu a CPMF que assegurava recursos substanciais para a saúde pública, uma bolada estimada em perto de R$ 20 bilhões.
O fim da CPMF beneficiou aquela fatia de brasileiros que, com residencia na classe média para cima, tem conta em banco e deixaram de entregar uma parcela minúscula de seus rendimentos — 0,1% sobre o valor de cada cheque ! – para a saúde pública.
Agora, já livres desta pequena despesa, esta mesma parcela da sociedade, que forma a clientela principal da saúde privada, irá pressionar,por 25% das vagas nos hospitais públicos de São Paulo.
Que nome tem isso? Não sei.
As universidades possuem cotas para estudantes da rede pública e, em algumas delas, há cotas para pessoas negras. Pode-se discutir o caráter democrático dessas iniciativas que tem como finalidade reparar injustiças históricas cometidas com fatias menos favorecidas da população.
Eu pergunto se é razoável aplicar o mesmo critério de preferencia para beneficiar aqueles brasileiros que tem planos privados de saude e que, a partir de agora, terão maior facilidade para conseguir vagas nos hospitais públicos.
Vamos combinar que o sujeito que tem plano de saúde é, basicamente, uma pessoa de classe média que pretende escapar das mazelas da rede pública. Não há nada de errado em pertencer a classe média e muito menos em possuir um plano de saúde privada.
É uma atitude compreensível e até necessária, num país onde a medicina oferecida pelo Estado é formada por raras ilhas de primeira qualidade cercadas por muitos arquipélagos de problemas estruturais e grande carencia.
Mas está na cara que vamos criar pacientes de segunda classe. Embora as autoridades possam garantir que as oportunidades serão iguais para todos, nós sabemos que é difícil acreditar que será assim.
Basta fazer uma comparação com situações semelhantes. Quem vai a fila de bancos ou de supermercados sabe como isso funciona. Aqueles que tem direitos especiais — não discuto se justos ou não — conseguem passar na frente e vão mais cedo para casa. A tal ponto que existem aposentados que já chegam ao banco com sacolas de pagamentos da família inteira para fazer. Ou mães que saem de casa com um bebê de colo apenas para passar na frente de todo mundo.
Para começar, as regras que irão definir o atendimento nos hospitais públicos são mais simples para quem vier do sistema privado. Basta a aprovação do médico conveniado. Já o paciente do serviço público terá de cumprir aquele longo e demorado ritual de quem procura tratar-se pelo SUS.
Do ponto de vista da direção dos hospitais, é óbvio que haverá um interesse maior em receber pacientes dos planos de saúde. O estímulo é economico. Isso porque o Estado irá cobrar despesas geradas por estes pacientes dos planos de saúde. Já o paciente comum receberá o tratamento de quem não tem nada a dar em troca.
Não é razoável imaginar que os dois pacientes serão tratados de forma igual.
Há uma questão política de fundo. Uma coisa é facilitar a vida dos mais velhos, nos supermercados. Ou mesmo de negros e pobres, nas universidades. Outra coisa é facilitar a vida dos pacientes que tem planos de saúde.
Vamos combinar que o modelo de saúde brasileiro faliu. Faltam recursos para um serviço público decente, acessível a todos. Já os sistemas privados foram construidos a partir de um modelo de negócio basicamente oportunista, que consiste em vender planos baratos para quem não necessita de atendimento e planos caríssimos (e inviáveis) para os cidadãos que já chegaram àquela idade em que é mais fácil ir ao médico do que ao restaurante. Estes acabam expelidos do sistema.
Na situação atual, a proposta do governo de São Paulo irá auxiliar os planos de saude a atender sua clientela. Como o quadro não é de vagas em excesso, a contrapartida é que haverá uma diminuição no atendimento de quem necessita do atendimento público.
A discussão real é outra.
Seria preciso reforçar a saúde pública, para que ela se tornasse capaz de atender uma parcela maior de brasileiros, inclusive famílias de classe média. Não se pode fazer isso sem um reforço nas verbas destinadas a saude pública. Este é o debate.