Os meios de comunicação e jornalistas ocidentais insistiram durante décadas que Tunísia e Egito, eram “Estados moderados”? Atualmente a horrível palavra “ditadura” estava exclusivamente reservada no mundo árabe muçulmano ao regime iraniano.
Uma ditadura na Tunísia? No Egito, uma ditadura? Vendo os meios de comunicação se esbaldarem com a palavra “ditadura” aplicada a Tunísia de Bem Alí e ao Egito de Moubarak, os seus leitores devem estar se perguntando se entenderam ou leram bem. Esses mesmos meios de comunicação e esses mesmos jornalistas não insistiram durante décadas que esses dois “países amigos” eram “Estados moderados”?
A horrível palavra “ditadura” não estava exclusivamente reservada ao regime iraniano? Como? Havia então outras ditaduras na região? E isso foi ocultado pelos meios de comunicação de nossa exemplar democracia ocidental? Eis aqui, em todo caso, um primeiro abrir de olhos que devemos ao rebelde povo da Tunísia.
Sua prodigiosa vitória liberou os europeus e outros povos "ocidentais" da “retórica hipócrita de ocultamento” em vigor em nossas chancelarias e em nossas mídias.
Obrigados a tirar a máscara, simulam descobrir o que nós estudiosos e críticos da visão unilateral das grandes mídias já sabíamos há algum tempo, a saber, que as “ditaduras amigas” não são mais do que isso: regimes de opressão.
Sobre esse assunto, os meios de comunicação não têm feito outra coisa do que seguir a “linha oficial”: fechar os olhos ou olhar para o outro lado confirmando a ideia de que a imprensa só é livre em relação aos fracos e aos povos isolados.
Por acaso Nicolás Sarkozy ( 1º ministro francês)não teve a altivez de assegurar que na Tunísia “havia uma desesperança, um sofrimento, um sentimento de angústia que, precisamos reconhecer, não havíamos apreciado em sua justa medida”, ao se referir ao sistema mafioso do clã Ben Alí-Trabelsi?
“Não havíamos apreciado em sua justa medida…” Em 23 anos…Apesar de contar, neste país, com serviços diplomáticos mais prolíficos que os de qualquer outro país…Apesar da colaboração em todos os setores da segurança (polícia, inteligência…). Apesar das estâncias regulares de altos responsáveis políticos e midiáticos que estabeleciam ali descomplexadamente seus locais de veraneio… Apesar da existência na França de dirigentes exilados da oposição tunisiana, mantidos marginalizados como pesteados pelas autoridades francesas e com acesso proibido durante décadas aos grandes meios de comunicação… Democracia ruinosa…
Na realidade, esses regimes autoritários foram (e seguem sendo) protegidos de modo complacente pelos EUA e seus aliados ocidentais que desprezaram seus próprios valores sob o pretexto de que constituíam baluartes contra o islamismo radical.
O mesmo argumento cínico usado pelo Ocidente durante a Guerra Fria para apoiar ditaduras militares na Europa (Espanha, Portugal, Grécia e Turquia) e na América Latina, pretendendo impedir a chegada do comunismo ao poder.
Que formidável lição das sociedades árabes revolucionárias aqueles que, a grande mídia, os descreviam em termos maniqueístas, ou seja, como massas dóceis submetidas a tiranos orientais corruptos ou como multidões histéricas possuídas pelo fanatismo religioso.
E agora, de repente, elas surgem nas telas de nossos computadores e televisores, preocupadas com o progresso social, não obcecadas pela questão religiosa, sedentas de liberdade, cansadas da corrupção, detestando as desigualdades e reclamando democracia para todos, sem exclusões.
Longes das caricaturas binárias, esses povos não constituem de modo algum uma espécie de “exceção árabe”, mas sim se assemelham em suas aspirações políticas ao resto das ilustradas sociedades urbanas modernas. Um terço dos tunisianos e quase um quarto dos egípcios navegam regularmente pela internet. Como afirma Moulay Hicham El Alaoui: “Os novos movimentos já não estão marcados pelos velhos antagonismos como anti-imperialismo, anticolonialismo ou antisecularismo.
As manifestações na Tunísia e no Egito são, até aqui, desprovidas de todo simbolismo religioso. Constituem uma ruptura geracional que refuta a tese do excepcionalismo árabe. Além disso, esses movimentos são animados pelas novas metodologias de comunicação da internet. Eles propõem uma nova versão da sociedade civil, onde o rechaço ao autoritarismo anda de mãos dadas com o rechaço à corrupção”.
Especialmente graças às redes sociais digitais, as sociedades da Tunísia e do Egito se mobilizaram com grande rapidez e puderam desestabilizar o poder em tempo recorde.
Ainda antes de os movimentos terem a oportunidade de “amadurecer” e favorecer a emergência de novos dirigentes entre eles. É uma das raras ocasiões onde, sem líderes, sem organizações dirigentes e sem programa, a simples dinâmica da exasperação das massas bastou para conseguir o triunfo da revolução.
Trata-se de um momento frágil e, sem dúvida, as grandes potências já estão trabalhando, especialmente no Egito, para que “tudo mude sem que nada mude”, segundo o velho adágio de O Leopardo. Esses povos que conquistaram sua liberdade devem lembrar a advertência de Balzac: “Se matará a imprensa assim como se mata um povo, outorgando-lhe a liberdade”.
Nas “democracias vigiadas” é muito mais fácil domesticar legitimamente um povo do que nas antigas ditaduras. Mas isso não justifica sua manutenção. Nem deve ofuscar o ardor de derrubar uma tirania.
A derrocada da ditadura na Tunísia foi tão veloz que os demais povos magrebinos e árabes chegaram à conclusão de que essas autocracias estavam na verdade profundamente corroídas e não eram, portanto, mais do que “tigres de papel”. Esta demonstração está ocorrendo também no Egito.
Daí esse impressionante levante dos povos árabes, que leva a pensar inevitavelmente no grande florescimento das revoluções europeias de 1848, na Jordânia, Iêmen, Argélia, Síria, Arábia Saudita, Sudão e também no Marrocos.
Neste último país (Marrocos), uma monarquia absoluta, na qual o resultado das “eleições” (sempre viciado) é decidido pelo soberano, que designa segundo sua vontade os chamados ministros “da soberania”, algumas dezenas de famílias próximas ao trono continuam controlando a maioria das riquezas.
Os telegramas divulgados por Wikileaks revelaram que a corrupção chega a níveis de indecência descomunal, maiores que os encontrados na Tunísia de Ben Alí, e que as redes mafiosas teriam todas como origem o Palácio. Trata-se de um país onde a prática da tortura está generalizada e o amordaçamento da imprensa é permanente.
No entanto, como na Tunísia de Ben Alí, esta “ditadura amiga” se beneficia da grande indulgência dos meios de comunicação e da maior parte de nossos líderes políticos ocidentais, os quais minimizam os sinais do começo de um “contágio” da rebelião.
Quatro pessoas se imolaram, incendiando suas próprias vestes. Produziram-se manifestações de solidariedade com os rebeldes da Tunísia e do Egito em Tânger, Fez e Rabat. Acossadas pelo medo, as autoridades decidiram subvencionar preventivamente os artigos de primeira necessidade para evitar as “rebeliões do pão”.
Importantes contingentes de tropas do Saara Ocidental teriam sido deslocados aceleradamente para Rabat e Casablanca. O rei Mohamed VI e alguns colaboradores teriam viajado a França no dia 29 de janeiro para consultar especialistas em ordem pública do Ministério do Interior francês (hipocrisia dos governos ocidentais dando guarita a essas ditaduras corruptas).
Ainda que as autoridades ocidentais desmintam as informações sobre o apoio as ditaduras do passado e do presente., está claro que a sociedade dos outros países árabes está seguindo os acontecimentos da Tunísia e do Egito, com excitação. Preparados para unir-se ao impulso de fervor revolucionário e quebrar de uma vez por todas as travas ditatoriais existente no Norte da África e Oriente Médio. E nos amantes da verdadeira democracia devemos cobrar todos aqueles que,nos EUA e na Europa, foram cúmplices durante décadas dessas “ditaduras amigas”.
Fonte: agenciacartamaior - texto original de Ignacio Ramonet com tradução Marco Aurélio Weissheimer