sábado, 25 de junho de 2011

A crise da "sociedade de mercado"


I
A particularidade da “sociedade de mercado” que se difundiu com extrema rapidez do século XIX em diante, dos centros às periferias, recebe um novo embate, variado, inconcluso, popular, desde regiões muito distintas.

Há algo da “promessa” do ideário liberal que, como ocorreu na Segunda Guerra Mundial, parece estar desvanecendo-se no ar: suas instituições fundamentais atravessam uma fase de muito desprestígio, o que antecipa um próximo período de rearranjos organizacionais, culturais e ideológicos de diversas magnitudes, sem que possa especular-se ainda sobre seus tempos de desenvolvimento nem sobre suas direções.

Mas pela cadeia de respostas e “indignações” que se manifestam diariamente neste novo ciclo de crise capitalista pode afirmar-se, retomando K. Polanyi, que uma (nova) Grande Transformação está ocorrendo de maneira cada vez mais explícita: a pretensão da autorregulação pressuposta em uma “sociedade de mercado” perdeu novamente sua força retórica moralizante e estruturadora dos comportamentos.

O que está se reclamando de diferentes formas é, no fundo, que a sociedade não fique como refém exclusivo do mercado, ou seja, que exista alguma forma de “intervenção social” sobre o mesmo, de regulação, com a variedade de opções e contradições que supõe um pedido desta natureza; em resumo, a sociedade antes que o mercado, e não o contrário.

II
O fim da primeira versão do padrão ouro internacional constituiu um momento chave na história do capitalismo, distinguindo duas épocas: representou um freio ao liberalismo (econômico) como modelo civilizatório, com sua variada edificação conceitual de ideologias conexas e instituições, dando lugar a uma transformação radical nas ideias sobre os destinos coletivos, inclusive deixando espaço de atuação para aquelas opções que terminaram por constituir um dos capítulos mais dolorosos da história do homem em sociedade.

No entanto, por processos históricos superpostos e derivados daquelas mudanças, após as modificações nos padrões de transação monetária dos anos 70 e a internacionalização das forças produtivas, acoplados à gravitação crescente dos circuitos de valorização financeira, um (novo) liberalismo conseguiu se reposicionar como modelo de sociedade, em paralelo com a hegemonia estadunidense.

Agora, esse mesmo (neo)liberalismo que foi se desenvolvendo desde então como discurso e prática econômica se desenhou ideologicamente sobre uma similar pretensão de “sociedade de mercado” autorregulada, com o acréscimo de que, pelas complexidades das circunstâncias, essa mesma pretensão devia ser equalizada por meio de alguns organismos supranacionais chave – FMI, Banco Mundial, Banco Central Europeu, entre outros – que dariam curso e projeção ao próprio “equilíbrio natural”.

Como aquele, agora é este neoliberalismo que está sob suspeita, sobretudo a partir da crise do capital financeiro (2008) que colocou a maioria dos países centrais diante da impossibilidade de, por um lado, reestabelecer uma dinâmica de acumulação que reverta a situação de default generalizado e, por outro controlar as derivas da própria especulação financeira que, longe de ter se moderado, espalha-se para múltiplos segmentos – como as commodities alimentares, questão que pode tornar o panorama global ainda menos auspicioso.

III
O que hoje se ativa em distintas partes do mundo é, como nos anos 30 do século XX, uma crítica profunda ao liberalismo, agora neoliberalismo. Evidentemente não se expressa de uma forma orgânica nem homogênea, o que debilita em certa medida a ressonância de questionamentos comuns feitos em diferentes tempos, espaços e idiomas.

Mas no centro das críticas populares, massivas, desordenadas, estão quase os mesmos elementos de antanho, com suas novas roupagens: em grandes traços e segundo as idiossincrasias de cada território, os protestos se dirigem contra as limitações das fórmulas representativas do Estado – ao fim das contas, a garantia de que as engrenagens sociais mantenham os privilégios – e as incapacidades derivadas para exercer a administração, e também contra a vacuidade na qual caiu a ficção liberal do consumo e do progresso individual, que espatifou contra a materialidade das realidades.

Uma crise econômica e substantivamente ideológica, de sentido, que não anula o sistema de um instante para outro, muito pelo contrário, mas que afeta a legitimidade e a autoridade de suas instituições no médio e longo prazo, questão não menor no que diz respeito à reprodução de uma determinada ordem social.

Se agora, esta ficção da “sociedade de mercado” autorregulada se fratura na Grécia e na Espanha, esse movimento é resultado de um processo que vem de vários anos e de outros países. Talvez suas primeiras manifestações tenham surgido nas periferias; neste sentido, o ciclo de protestos sociais latino-americanos que deu lugar a certos governos progressistas deve somar-se a essa lista.

Não é causalidade, então, que seja no Chile – na contramão destes governos e dos processos que os forjaram – onde também se replica o atual descontentamento, a partir de um rígido esquema universitário exclusivamente orientado à figura de um consumidor privilegiado.

IV
Como socialização política, o liberalismo/neoliberalismo volta a colapsar; como modelo organizador da sociedade volta a evidenciar sua incapacidade de modo contundente. Nisso consiste, a atual crise do capitalismo: a sucessão de “indignados” não faz mais do que exibir o fracasso de sua proposta civilizatória, a inconsistência de seus princípios, a contradição de suas instituições.

A pretensão autorregulatória neoliberal se desmancha dia após dia, do mesmo modo que suas “promessas”. Resulta fundamental que as demandas de intervenção e regulação desta crise não se resolvam autoritariamente como no século passado, uma tendência latente se se leva em conta os triunfos das direitas políticas em boa parte dos países europeus.

Neste sentido, certas medidas políticas definidas por alguns governos latino-americanos parecem estar à altura das circunstâncias, o que é inclusive, admitido por acadêmicos estadunidenses e europeus. Não é pouco, levando em conta o tradicional lugar que foi outorgado à região.

Por Amílcar Salas Oroño - Professor do Instituto de Estudos da América Latina e Caribe, da Universidade de Buenos Aires.

Fonte: Carta Maior