segunda-feira, 13 de junho de 2011

Os ricos cada vez mais ricos


Eu, você e a torcida do Flamengo, do Corinthians, do Santos, do Palmeiras, do
Vasco, passamos os últimos anos ouvindo o discurso de que o esforço
individual e o mérito de cada um constituiam o melhor caminho para construção de
uma sociedade mais justa e próspera.

Parecia a redescoberta da pedra fundamental das sociedades humanas.
Ninguém formulou essa visão de forma tão clara e coerente como a primeira
ministra britânica Margareth Tatcher.

Principal personalidade da reconstrução conservadora do mundo desenvolvido iniciado nos anos 80, Tatcher defendia uma doutrina segundo a qual a união das liberdades individuais com a redução do papel do Estado em todos os níveis da existência constituem o único caminho seguro para a prosperidade e a civilização de nosso tempo.

Radical e coerente, Tatcher traçou uma fronteira ideológica no mundo de seu tempo. Sustentava a idéia de que a noção de classes sociais era uma ficção política, destinada a engordar burocratas e aproveitadores de organizações sociais, sem base na vida real. Ao longo de décadas, suas convicções eram repetidas pelo mundo inteiro, como verdades autoevidentes e sem merecer dúvida nem contestação. Com a presença de Ronald Reagan na Casa Branca, o tatcherismo conquistou o aliado que necessitava para expandir-se pelo mundo.

Trinta anos depois, o resultado está aí, à vista de todos. Segundo pesquisa
escomendada pelo governo britânico, cujas conclusões não foram contestadas por
ninguém, aquele país que já foi um símbolo do equilíbrio social possível no regime
capitalista avança em ritmo acelerado para a terceiromundização de suas relações
sociais. Claro que a Inglaterra está longe de um Brasil, de uma Bolívia. Mas os dados inidicam que caminha para este mesmo lugar.

O dado essencial envolve a fatia dos ricos no bolo da riqueza nacional. Em 1979, a
parcela que vive no topo do topo da pirâmide, e que envolve 0, 1% da população,
embolsava 1,3% da renda total do Reino Unido. Hoje, essa mesma faixa da
população recebe 5%; passará a 14% em 2030, se for mantida a tendência atual.
Vamos combinar que um enriquecimento desse tipo não é apenas moralmente
questionável nem socialmente iníquo. Pode ser um perigo para a economia.

Em nenhum país do mundo é fácil retirar bilhões de libras do bolso da classe média e dos mais pobres para colocá-lo no cofre dos mais ricos, num processo regressivo que os próprios pesquisadores dizem que pode levar o país de volta aos tempos da Rainha Vitória, anteriores à construção do Estado do bem-estar social que marcou o século XX.

Para convencer um eleitorado educado e desconfiado como os ingleses, Tatcher não se apresentava como uma conservadora, mas como uma inovadora, quase uma revolucionária em sua doutrina que defendia um capitalismo popular capaz de beneficiar todo cidadão que, sem consideração de origem, tivesse animo para arregaçar as bancas e pegar duro no trabalho.

As grandes promessas de melhoria social se reveleram pura retórica.

Seu valor maior era o velho egoísmo individual como argumento para o progresso.

Ao combater os sindicatos, uma guerra permanente travada em nome das liberdades do indivíduo, Tatcher apenas facilitou a redução dos salários e o corte de benefícios, pois diminuiu o poder de barganha dos mais fracos.
Na vanguarda das privatizações que se tornariam um processo universal, a primeira ministra anunciou que as ações de estatais poderiam ser adquiridas por trabalhadores, que passariam a embolsar parte de seus lucros.

Longe do discurso, as melhores oportunidades estavam sendo abertas para aquele 0,1% da população que já estava na parte de cima da pirâmide social, mostra a pesquisa. Os outros 99,9% foram convocados, gentilmente ou compulsoriamente, a abrir o bolso para entregar mais uma parcela de seus ganhos, que já eram menores. A revolução revelou-se, como ocorre tantas vezes, uma contra-revolução.

Há um aspecto especialmente dramático neste processo. Você pode até achar que a desigualdade faz parte da vida humana assim como a natureza produz animais ferozes como um crocodilo e outros mansos como um urso panda, ou vegetações espinhosas que resistem às intempéries e também orquídeas frágeis que necessitam de cuidado a todo momento. Isso envolve a visão de mundo de cada um.

Mas a desigualdade se torna um problema grave e sério quando passa a comprometer os esforços de crescimento de uma sociedade e torna difícil construir uma economia saudável e equilibrada. Ela produz interesses e gera instrumentos de poder que trabalham automáticamente pela sua reprodução e é por isso que a pesquisa inglesa indica que pode crescer muitas vezes mais daqui para a frente.

A questão pode ser resumida assim: a desigualdade reduz os mercados de consumo, afeta os investimentos e encarece a produção, tornando o crescimento caro, complicado, e até inviável. Os negócios que o capitalismo necessita para se alimentar todos os dias tornam-se difíceis, tortuosos, arriscados demais.

Não sou eu quem diz isso, mas um professor de Chicago que foi considerado o mais influente economista do mundo depois da crise de 2008-2009 num levantamento da Economist, insuspeita de simpatias heterodoxas de qualquer tipo.

A lição de Raghuran Rajan — acredito que, como eu, você nunca ouviu falar desse nome — é que a desigualdade está na origem daquele processo que levou à pior crise do sistema capitalista em 80 anos.
Ele acredita que, com a criação de um universo social cada vez mais desigual as empresas e os governantes são obrigados a tomar medidas até temerárias para facilitar o crédito e estimular o consumo de todas as maneiras, numa ação que produz de crises e catástrofes em vez de prosperidade.

Acho difícil ler uma descrição tão simples e clara da crise das hipotecas de segunda llnha, o processo que levou os barões das finanças do mundo inteiro a emprestar a quem não podia pagar, numa espiral delirante e inescrupulosa de crédito e ganancia que jogou o mundo no abismo. Não por acaso, foi no pós-crise que as idéias de Raghuran Rajan se tornaram tão influentes, como nota a Economist.

Dois anos depois da crise, a Inglaterra patina. A economia do Velho Mundo não sái do lugar e desmorona nos países mais fracos. A decepção com os trabalhistas levou os conservadores para o governo, numa gestão que multiplica políticas de austeridade, corta gastos públicos e concentra renda. Dá para entender porque se acredita que a desigualdade vai seguir crescendo, concorda?

Texto de PAULO MOREIRA LEITE

Fonte: revista Época