terça-feira, 6 de dezembro de 2011

O financiamento das montadoras no Brasil

No momento em que a indústria automotiva (fabricantes de veículos e componentes) se prepara para fazer investimentos que podem passar de R$ 65 bilhões nos próximos cinco anos, seria o caso de se perguntar de onde virá todo esse capital. As empresas dizem que parte virá do próprio caixa e de bancos internacionais -- provavelmente, a menor das partes, dado o cenário internacional adverso.

As corporações envolvidas não gostam de comentar é que o maior volume, com raríssimas exceções, virá de fontes públicas, seja por meio de financiamentos de bancos públicos, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ou pela oferta de generosos incentivos orçamentários e tributários, dos governos estaduais e federal.

Basicamente, isso quer dizer que o Brasil está pagando para que essa indústria cresça aqui. Portanto, a discussão passa, ou deveria passar, sobre quanto incentivo deve ser concedido para que essas empresas façam investimentos no país. É nesse ponto que surge o problema da falta de transparência com o uso de dinheiro público (ou seja, de todos nós) para financiar empreendimentos privados.

As empresas são verdadeiras caixas-pretas protegidas em boa medida pelo próprio governo, que faz grande alarde sobre instalação de fábricas, com direito a recepções de executivos por presidentes e governadores em seus palácios para anúncios de investimentos, que tempos depois dão lugar a palanques montados para inaugurações, transformadas em eventos de captação de bônus políticos. Contudo, não se faz publicidade alguma quando se trata de revelar quais e quantos incentivos com dinheiro público são concedidos a esses empreendimentos, que muitas vezes superam o total a ser investido.

Ficam sem respostas algumas perguntas importantes. Quanto dinheiro público é dado a essas empresas? Por quê? Elas de fato precisam disso ou iriam fazer mais fábricas mesmo sem incentivos? O mercado brasileiro não é grande o suficiente para que as corporações possam viver sem tantos incentivos? Por que ninguém presta contas desse dinheiro? E se não há nada de errado com isso, por que os benefícios são negociados em gabinetes fechados?

Mais ainda: essa falta de transparência não vai diretamente contra os princípios de ética e responsabilidade social corporativa que todas essas companhias dizem seguir estritamente?

EXEMPLOS DO PASSADO
Como não existe transparência pública nem privada sobre os incentivos recebidos pelas montadoras, é impossível calcular exatamente o quanto elas recebem, mas é possível fazer aproximações por meio de algumas contas, baseadas nas leis que criaram esses benefícios (quase sempre incompreensíveis para a patuleia pagadora de impostos), e lançando mão da ajuda de pesquisadores que levantaram dados.

Em sua dissertação de mestrado na Unicamp, a economista Maria Abadia Silva Alves fez um interessante levantamento sobre a guerra fiscal entre Estados para atrair montadoras nos anos 1990. O trabalho foi apresentado há exatos dez anos, em novembro de 2001. A economista levantou que os incentivos estaduais fiscais (descontos em tributos) e orçamentários (infra-estrutura, terrenos, capital de giro etc.) oferecidos naquela época para instalação de fábricas da Mercedes-Benz em Juiz de Fora (MG), da Renault em São José dos Pinhais (PR) e General Motors em Gravataí (RS) somaram R$ 1,8 bilhão, enquanto os investimentos das três foram de R$ 1,65 bilhão.

Segundo os cálculos da economista, a Renault investiu R$ 1 bilhão na fábrica paranaense e recebeu incentivos de R$ 353 milhões, mais o investimento do governo do Paraná, que teria comprado US$ 300 milhões em ações da empresa -- o que não pode ser contabilizado como benefício. A GM colocou R$ 600 milhões em Gravataí, mas recebeu R$ 759 milhões.

E a Mercedes-Benz aportou R$ 695 milhões em sua malsucedida linha de produção de automóveis mineira, mas obteve R$ 690 milhões de volta -- o que explica a opção de ter mantido a unidade aberta mesmo com prejuízo na operação. E nisso tudo não estão incluídos os benefícios fiscais federais do regime automotivo, que engordam bastante a conta.

O CASO FORD
A Ford exigiu um preço alto para ser a primeira montadora a se instalar no Nordeste brasileiro, uma região sem tradição industrial e sem infraestrutura formada para isso no fim da década de 1990. Depois de desistir, em 1999, de fazer sua fábrica em Guaíba (RS) -- justamente por falta de acordo com o governo Olívio Dutra (PT), que não quis honrar os incentivos oferecidos pelo governo anterior --, a Ford começou a negociar com a Bahia generosos benefícios para aportar o investimento de US$ 1,2 bilhão no Estado.

Primeiro, com apoio do então senador Antonio Carlos Magalhães (PFL/DEM), ex-governador da Bahia, conseguiu reabrir o regime automotivo por meio da aprovação da Lei 9.826, de 23 de agosto de 1999, que deu à empresa prazo de três anos e meio para começar a produzir e usufruir dos benefícios tributários. A lei garantiu desconto de 35% no IPI para os carros montados na região até o fim de 2010. Além disso a Ford ganhou abatimento de 65% do ICMS até 2013 e o BNDES concedeu financiamento de R$ 1,3 bilhão.


Linha da Mercedes-Benz em Juiz de Fora, em 1999, quando fabricava o Classe A nacional; depois do fracassado cupê CLC, unidade deixou de produzir automóveis de passeio

Inicialmente, os incentivos negociados somavam R$ 700 milhões por ano -- mas o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), considerou a cifra exagerada e baixou para R$ 180 milhões/ano, segundo noticiou a imprensa na época.

Mas a Ford não desistiu de abocanhar mais incentivos e, durante 2006, articulou outro plano para ampliar os ganhos. Em 2 de janeiro de 2007 a empresa anunciou a compra da pequena fábrica cearense da Troller, mas não sem que, poucos dias antes, em 28 de dezembro de 2006, o governo tivesse aprovado a Lei 11.434, que no seu Artigo 8º prevê a transferência de incentivos fiscais a compradores das empresas adquiridas.

Assim a Ford herdou da Troller os benefícios da Lei 9.440, de 1997, com corte ainda maior no IPI para toda sua produção no Nordeste, equivalente a duas vezes o valor das contribuições devidas de PIS e Cofins.

No fim de 2009, em outra manobra política, com a promessa de investir R$ 4,5 bilhões em suas operações brasileiras, a Ford conseguiu prorrogar por mais cinco anos os incentivos fiscais que recebe na Bahia, depois de intensas articulações do governador baiano Jaques Wagner (PT) junto ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que aprovou a extensão em escala decrescente.

Considerando somente o EcoSport mais barato fabricado em Camaçari, vendido no Brasil por cerca de R$ 54 mil, a Ford paga perto de R$ 16 mil em impostos, mas acumula R$ 15,6 mil em créditos tributários de IPI e ICMS -- ou seja, na prática quase não paga impostos pelos carros que produz na Bahia, mas cobra como se não tivesse benefícios, o que aumenta significativamente sua rentabilidade.

Como só neste ano a Ford já vendeu perto de 35 mil EcoSport, teria acumulado R$ 548 milhões em créditos tributários se tivesse vendido só a versão mais barata do modelo.


Governador de Pernambuco, Eduardo Campos, cumprimenta 1ª funcionária da Fiat em Goiana; presidente da Fiat e da Anfavea, Cledorvino Belini observa e sorri: fábrica faz bem para a imagem

Em dez anos de operação em Camaçari, completados este ano, a montadora produziu cerca de 2 milhões de veículos na unidade baiana. Com isso, certamente acumulou muito mais créditos tributários do que fez investimentos lá. Isso pode explicar como a empresa vem conseguindo financiar seus investimentos no país com recursos próprios, sem precisar da matriz.

A Ford alega que necessita desse diferencial para compensar as desvantagens competitivas que tem no Nordeste, mas ninguém sabe ao certo qual seria o tamanho exato dessas desvantagens, nem se Camaçari continuaria a ser a unidade mais produtiva do mundo da empresa se não recebesse tantos incentivos. É fato que houve progresso econômico na região, com a geração de 8.000 empregos diretos e 80 mil indiretos, segundo informa a Ford -- mas não se sabe quanto isso custou.

O mesmo modelo foi utilizado para atrair a Fiat para Pernambuco. No apagar das luzes do governo Lula, o regime automotivo foi reaberto em dezembro de 2010, em uma janela só para beneficiar o acolhimento do projeto da montadora, que receberá os mesmos incentivos fiscais federais da Ford, mais os estaduais não revelados. De novo, tudo foi negociado às escuras. Com esse precedente, Jaques Wagner já disse que também quer reabrir o regime automotivo para receber novas indústrias em seu Estado.

Em julho passado a Fiat começou a levantar R$ 5,8 bilhões em fontes públicas para o financiamento do seu complexo industrial no Nordeste. Segundo informações extraoficiais do jornal Folha de Pernambuco, R$ 1,2 bilhão viria do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE), administrado pela Sudene; R$ 800 milhões do Banco do Nordeste (BNB); e R$ 3,8 bilhões do BNDES. Além de financiar a própria fábrica em Goiana (PE), a Fiat também estaria reservando recursos para fornecedores e outras empresas do grupo, sem precisar buscar dinheiro no exterior.

ENTRA E SAI
Além dos generosos incentivos governamentais que recebem, as montadoras estão se financiando em larga medida com recursos do BNDES e entidades locais de fomento, como no caso de FDNE e BNB no Nordeste, que oferecem taxas e prazos para lá de camaradas no contexto nacional, em que prevalece há décadas a prática do maior juro do mundo.

Portanto, em última instância, é o governo o maior financiador do maior ciclo de investimento do setor automotivo já visto no Brasil, com vastos recursos no grosso destinados a grandes empresas multinacionais que, somente de janeiro a outubro deste ano, enviaram US$ 4,5 bilhões em remessas de lucro às matrizes no exterior atualmente, é o setor que mais remete dividendos a partir do Brasil.

Levando isso em consideração, para que este ciclo de investimento possa ser chamado de virtuoso, é preciso aumentar a transparência para que todos possam enxergar os reais benefícios ao Brasil. Que tal abrir esse debate?


Pedro Kutney é jornalista e escreve no Automotive Business, onde este artigo foi publicado originalmente.

Fonte: UOL. blog do nassif