O controle do corpo e da mente é uma das mais antigas aspirações da humanidade. Qualquer que fosse o motivo para isso - poder, riqueza material, conhecimento, ascensão espiritual, ou a busca da cura e da imortalidade, - dedicar-se à tarefa de prevenir e curar doenças físicas ou mentais tem sido o cotidiano de pessoas, cientistas e instituições e, mais recentemente, de indústrias e movimentos sociais. Apesar de ter avançado neste campo, a atenção à saúde individual ou coletiva por parte da humanidade sempre foi alcançada de forma desigual do ponto de vista social. O resultado de inovações nos meios terapêuticos e de diagnósticos não são acessíveis num mesmo patamar para ricos e segmentos sociais excluídos. O mérito em alcançar controle crescente sobre o corpo e a mente, obtido a partir da medicina moderna, fica desbotado diante do distanciamento existente entre populações com cobertura de sistemas de saúde, ricas e sadias e populações descobertas, miseráveis e doentes, em diferentes regiões do planeta.
A questão,no entanto, não é simples. Viver num país rico não significa necessariamente ter garantia de acesso a um sistema público de saúde de qualidade. Os EUA, por exemplo, apesar de ser o maior PIB per capta do mundo não garante à população um sistema público de saúde com cobertura para todos, como acontece com o Sistema Único de Saúde - SUS no Brasil, instituído a partir da Constituição de 1988, quando 70 milhões de brasileiros que não tinham carteira assinada, passaram a ter assistência médica e hospitalar gratuita. Hoje o SUS é destinado a todos os cidadãos brasileiros, com direito a consultas, exames, internações e tratamentos nas unidades de saúde vinculadas da esfera municipal, estadual e federal.
Financiado com recursos de impostos e contribuições sociais pagos pela população, ele conta com a participação do setor privado de forma complementar por meio de contratos e convênios de prestação de serviço ao Estado quando as unidades públicas de assistência à saúde não são suficientes para garantir o atendimento à população de uma determinada região. Uma de suas metas mais desafiadoras é a de transformar-se em mecanismo de promoção da equidade no atendimento das necessidades de saúde da população, independente do poder aquisitivo do cidadão.
O sistema de saúde americano tem sido criticado há muitos anos pelos seus altos custos, e pela sua baixa eficiência, apesar de ser o país com os melhores profissionais de saúde do mundo. É sem dúvida, o país que mais gasta com saúde, 15% do seu PIB, o equivalente a 6000 dólares por habitante/ano. Mesmo gastando mais que o dobro do que a maioria dos países onde todos os habitantes têm direito ao tratamento que necessitam, dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), indicam que a saúde americana, em termos de eficiência, se localiza abaixo do quadragésimo lugar entre os países do mundo, localização inferior a de vários países pobres. Todo este dinheiro não impede que cerca de 15% da população, o equivalente a 46 milhões de americanos, não tenha direito à assistência médica quando adoecem. Este número refere-se aquelas pessoas que, não tendo dinheiro suficiente para se associar a um plano de saúde privado, também não preenchem as condições para serem admitidos em uma das duas organizações mantidas pelo governo, o Medicaid, que atende os mais pobres entre os pobres americanos e o Medicare que dá cobertura aos idosos carentes.
Nos últimos anos, Brasil, Rússia, Índia e China, conhecidos sob a sigla BRIC´s, sobreviveram à crise que o mundo desenvolvido sofre desde 2008 e são mencionados como futuros líderes da economia e da sociedade mundial. Obviamente, a questão da pobreza e da saúde, muitas vezes a ela relacionada, faz parte da preocupação desses gigantes em ascensão. Neste futuro próximo, provavelmente o mundo passará a ser realinhado com um diálogo mais equilibrado e influenciado pelos países emergentes; o G7 será substituído pelo G20 e organismos multilaterais, como o FMI e o Banco Mundial sofrerão mais influência dos países emergentes na sua condução. Como parte do processo de desenvolvimento com inclusão social, os BRIC´s devem passar a implementar políticas de saúde universais, eliminando as doenças associadas a pobreza e criando sistemas de saúde eficientes que conduzam suas populações para um ideal de felicidade que ultimamente tem sido associada a uma melhor saúde. Cabe, portanto, saber: como estes países estão desenhando seu caminho para uma saúde universal, equitativa e de boa qualidade para sua população?
A situação dos BRIC´s não pode ser considerada homogênea. A história de cada um e suas características etno-culturais, geografia e indicadores socio-econômicos e demográficos são totalmente diferentes. Apresenta em comum o fato de que suas economias têm um grande peso relativo e tem crescido nos últimos anos a taxas maiores que a média mundial. Considerando a dinâmica do Produto Interno Bruto (PIB), em 2009 e 2010, o Brasil cresceu -0,2% e 7,5%, a China, 9,1% e 10,2%, a Índia 7,7% e 8,8% e a Rússia, -7,9% e 4,0% respectivamente. Esta última tem tido seu pior desempenho influenciado pelo da zona do Euro, a qual teve débil performance econômica nos últimos dois anos. Mas em anos anteriores, a economia russa também cresceu a taxas mais elevadas que a verificada na média dos países desenvolvidos.
Se considerarmos o tamanho da população, países como a China e a Índia são sete a nove vezes maiores que o Brasil e a Rússia. Em 2009, a população chinesa e a indiana era estimada em 1,3 e 1,2 bilhões, enquanto a brasileira e a russa, em 191 e 142 milhões de habitantes, respectivamente. Todos os BRICs já ajustaram sua fecundidade. A maior taxa de fecundidade total (TFT) continua sendo a da Índia (2,1 filhos por mulher em idade fértil). Brasil, China e Rússia têm taxas inferiores ao nível de reposição. A menor TFT dos quatro países é a da Rússia, com 1,5 filhos por mulher em idade fértil, mas essa taxa vem se elevando progressivamente em função de programas explícitos de aumento de natalidade implementados na última década. Desde 2007, por exemplo, o Governo aumentou o auxílio para mulheres que cuidam de seus filhos nos primeiro ano, correspondente a um pagamento único de US$10,000 por filho antes da idade pré-escolar.
Dadas as diferenças na magnitude populacional, o impacto do crescimento econômico da China e da Índia na geração bruta de riqueza tem sido e será muito maior do que o da Rússia e do Brasil. O PIB chinês, que em 2010 ultrapassou o do Japão e já é o segundo maior do mundo, deverá ser em 2050 cerca de 26% mais elevado que o norte-americano, que hoje detém a primeira posição. Em 2009, a renda per-capita da Rússia era 80% superior à brasileira, cerca de três vezes maior que a da China e quase seis vezes acima da auferida pela população indiana. Brasil e Rússia tinham uma pequena porcentagem de pessoas abaixo da linha de pobreza, o que não acontecia com a China e muito menos com a Índia, onde 42% da população ganhava menos de US$1,25 por dia para sobreviver. Dadas as características sócio-econômicas, pode-se dizer que Brasil e a Rússia estão mais próximos de erradicar a miséria do que a India e a China onde, apesar do rápido crescimento econômico, ainda subsiste grandes contingentes de população com níveis de renda abaixo da linha de pobreza. O número de pessoas vivendo com menos de US$1,25 por dia na China é maior do que o total da população brasileira. Na Índia este contingente é maior do que 1,5 vezes a soma da população russa com a brasileira. Estas condições dos BRIC's se refletem obviamente nas condições de saúde da população e nas soluções implementadas por cada um.
A Índia, como reflexo de sua elevada pobreza e baixo nível de renda per-capita, apresenta as piores condições de saúde, com taxas de mortalidade infantil e mortalidade materna diversas vezes superior a dos outros BRIC´s. O gasto em saúde na Índia é quase 16 vezes menor que o do Brasil e cerca de 12 vezes mais baixo que o da Rússia. O gasto público em saúde na Índia é também claramente insuficiente, dado que com US$ 10 per-capita/ano não se pode sequer oferecer cuidados básicos de saúde pública necessários à redução da mortalidade infantil e materna. É por este motivo que menos da metade dos nascimentos no país tem sido atendida por pessoal qualificado. A segunda observação que emerge desta comparação é a de que a China, com um gasto em saúde quase seis vezes menor que o brasileiro e cinco vezes menor que o da Rússia, tem a maior expectativa de vida e a menor taxa de mortalidade materna entre os quatro países. A Rússia se notabiliza por investimentos públicos mais elevados em saúde, resultando em baixas taxas de mortalidade infantil e materna. No entanto, sua esperança de vida é menor que a da China e Brasil, notadamente pela mortalidade adulta precoce por doenças crônicas associadas a elevados fatores de risco como o alcoolismo e o tabagismo.
Já o Brasil teve progressos recentes na redução da mortalidade infantil que diminuiu 60% entre 1990 e 2008 e na melhoria das condições básicas de saúde com a implementação de programas na última década que progressivamente tem aumentado o acesso dos mais pobres a cuidados básicos e preventivos e a medidas de promoção que reduzem os fatores de risco associados a doenças crônicas. O gasto em saúde no Brasil é o mais elevado entre os BRIC’s e o gasto público é mais de cinco vezes superiores ao da China.
Não se pode afirmar que os BRIC´s tenham estratégias similares para alcançar a universalização em saúde, embora todos garantam tais direitos em suas constituições. A distância deste objetivo e as estratégias para alcançar são muito distintas, assim como a eficiência das políticas implementadas, os recursos gastos e seus resultados. Se classificarmos os BRIC´s quanto a duas características: magnitude dos gastos (maiores ou menores) e resultados básicos alcançados (melhores ou piores) vamos encontrar quatro situações distintas. O Brasil pode ser classificado como um país onde os gastos são maiores e os resultados são melhores. A Rússia ingressa no nível onde os gastos são maiores, mas os resultados piores. A Índia corresponde a uma situação onde os gastos são menores e os resultados piores e a China pode ser representada com gastos menores e resultados melhores.
Vale mencionar, no entanto, que a vantagem comparativa da China - expressa em alcançar melhores resultados com menos gastos - se encontra influenciada por sua forma de Governo, ainda marcada pelo controle pleno do Estado e pela falta de liberdades civis. Com isso, o Governo tem a capacidade de fixar os preços dos serviços, controlar salários e padronizar os resultados a serem alcançados, com punições severas para aqueles que não cumprem. Na medida em que as liberdades democráticas forem estabelecidas, a economia política para o gerenciamento de custos e qualidade em saúde torna-se muito mais complexa.
Na luta por um sistema público de saúde de qualidade os Bric's tem vários desafios para enfrentar. O primeiro deles é o da equidade. Todos ainda passam por sociedades divididas com contingentes expressivos de pobreza. No Brasil o primeiro passo já foi dado: a saúde é um direito constitucional. O segundo é o da eficiência dos serviços. Mudar a eficiência passa pela questão cultural, pela educação e pela fiscalização do governo sobre estes serviços. A gestão participativa no SUS congregando 77 mil conselheiros e integrando redes e movimentos sociais contribuem em muito para isso, no caso brasileiro.
O terceiro desafio é o do envelhecimento. Todos esses países já estão passando por uma progressiva avalanche de doenças crônicas (em alguns casos com mortalidade precoce, como na Rússia) sem que montem estratégicas eficazes de promoção e prevenção que reduzam o custo da atenção médica e prolonguem a vida. O quarto desafio é o da sustentabilidade. Que políticas fiscais poderão sustentar os sistemas de saúde de países que ainda não construíram plenamente seu desenvolvimento e capital humano e social básico?
Diante dos desafios, resultados já se impõem e devem ser reconhecidos. O sistema de saúde brasileiro orientado pela atenção básica foi citado como exemplo pela Organização Mundial de Saúde em 2008. Somos também reconhecidos internacionalmente pelos programas de AIDS, antitabagismo, banco de leite humano, transplantes e câncer.
Para citar apenas alguns exemplos de avanços, lembro que o Brasil erradicou a paralisia infantil e o sarampo; a prevalência de fumantes caiu de 34% em 1989 para 17,25, em 2008; e o SUS realiza atualmente 75% da atenção de alta complexidade. Dados relativos a 2007 apontam que o sistema foi responsável por 12 milhões de internações hospitalares, 215 mil cirurgias cardíacas e a milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia. Desde 2003 o SUS criou o Serviço de Atendimento Móvel (SAMU) com uma cobertura de 105 milhões de pessoas.
Para atender a população que necessita de transplantes o Brasil possui um banco com 750 mil doadores voluntários de medula óssea, além da Rede Brasileira de Banco de Sangue e Placentário. Outro grande avanço que merece ser citado foi a instituição em 2001 da Política de Saúde Mental que gradativamente desativa o sistema de asilo e implementa Centros de Atenção Psicossocial para pessoas com transtornos mentais. Aliado a tudo isso tivemos nos últimos anos uma ampliação da assistência farmacêutica com o fornecimento de medicamentos essenciais e antirretrovirais e iniciativas como o Programa Farmácia Popular do Brasil, e a política de medicamentos genéricos.
O SUS está longe de ser o que pretendemos que ele um dia venha a ser, mas faz parte desta trajetória o reconhecimento das conquistas. A parcela da população que utiliza o SUS reconhece isso. Segundo pesquisa do IPEA, a distribuição gratuita de medicamentos realizada pelo SUS foi considerada o terceiro ponto mais positivo por 33,4% dos entrevistados que utilizam o sistema e para 30,1% dos que não utilizam. O primeiro ponto mais positivo foi o da universalidade do atendimento, prova de que a simples existência do SUS e de seu princípio maior já são reconhecidos como de grande importância pelo povo brasileiro.
Texto de Chico Vigilante
Fonte: brasil247