segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A história do Iraque se repetirá na Líbia?


A natureza imprevisível da guerra na Líbia implica que as palavras raramente sobrevivam ao momento em que são escritas. O que Kadafi deverá estar pensando agora? Com sua visão enviesada e astuta do mundo líbio, ele poderia sobreviver para prosseguir um conflito civil-tribal e assim consumir os novos amigos líbios do Ocidente no pântano da guerra de guerrilhas e debilitar pouco a pouco a credibilidade do novo poder.

Condenados sempre a travar a guerra passada, voltamos a cometer o mesmo velho pecado na Líbia. Muammar Kadafi desaparece logo depois de prometer lutar até a morte? Não é a mesma coisa que fez Saddam Hussein? Quando Hussein desapareceu e as tropas estadunidenses sofreram suas primeiras baixas ante à insurgência iraquiana, em 2003, foi nos dito – pela boca do pró-cônsul estadunidense Paul Brenner, dos generais, dos diplomatas e dos decadentes especialistas da televisão – que os combatentes da resistência eram fanáticos, desesperados que não se davam conta de que a guerra havia terminado.

E se Kadafi e seu filho sabichão seguem em fuga – e se a violência não termina – quanto tempo vai levar para que outra vez nos apresentem aos desesperados que não entenderam que os rapazes de Bengasi estão no poder agora e que a guerra terminou? De fato, não menos do que 15 minutos – literalmente – depois de ter escrito as palavras acima (às 14 horas de quarta-feira), um repórter da Sky News reinventou a palavra “fanáticos” para definir os homens de Kadafi.

Inútil dizer que tudo é para o bem no melhor dos mundos possíveis, no que diz respeito ao Ocidente. Ninguém descarta o exército líbio e ninguém proscreve os kadafistas de um papel futuro no país. Ninguém cometerá os mesmos erros que cometemos no Iraque. E não há tropas em terra.

Nenhum zumbi encerrado em uma zona verde ocidental, cercada por muralhas, tenta dirigir o futuro da Líbia. “É assunto dos líbios” tornou-se o refrão de toda manifestação do Departamento de Estado/Escritório de Política Exterior/Quai d’Orsay. “Nós não temos nada a ver com isso”.

Mas, desde logo, a presença massiva de diplomatas ocidentais, representantes de magnatas do petróleo, mercenários ocidentais de altos salários e obscuros militares britânicos e francês – todos simulando ser conselheiros e não participantes – conforma a Zona Verde de Bengasi.

Pode ser que não estejam (ainda) rodeados de muralhas, mas o fato é que eles governam por meio dos distintos heróis e pilantras locais que se estabeleceram como senhores políticos. Podemos passar por cima do assassinato de seu próprio comandante – por alguma razão, ninguém menciona mais o nome de Abdul Fatá Yunes, apesar de ele ter sido liquidado há apenas um mês em Bengasi -, mas eles só podem sobreviver se permanecerem com o cordão umbilical preso ao Ocidente.

Esta guerra, é preciso dizer, não é a mesma que nossa perversa invasão do Iraque. A captura de Saddam só levou a resistência a multiplicar os ataques contra as forças ocidentais porque aqueles que, até então, se recusavam a participar da insurgência por medo de que os EUA voltassem a colocar Saddam no governo, perderam essas inibições. Na verdade, a prisão de Kadafi, junto com a de Saif, precipitaria sem dúvida o final da resistência dos seguidores do ditador. O verdadeiro temor do Ocidente neste momento – ainda que isso possa mudar à noite ou amanhã – é a possibilidade de que o autor do Livro Verde tenha conseguido chegar até Sirte, onde a lealdade tribal pode ser mais forte que o medo de uma força líbia respaldada pela OTAN.

Sirte – onde Kadafi, no início de sua ditadura, converteu os campos de petróleo da região no primeiro dividendo internacional para os investidores logo depois de sua revolução de 1969 – não é Tikrit. É a sede da primeira grande conferência da União Africana, a escassos 30 quilômetros da cidade natal de Kadafi: uma cidade e uma região que receberam enormes benefícios de seu governo de 41 anos. Strabo, o geógrafo grego, escreveu que os pontos dos assentamentos no deserto, ao sul de Sirte, converteram a Líbia em uma pele de leopardo. Kadafi deve ter gostado dessa metáfora.
Quase dois mil anos depois, Sirte era o ponto de união entre as colônias italianas de Tripolitania e Cirenaica.

Em Sirte os rebeldes foram derrotados pelas forças leais a Kadafi na guerra de seis meses travada este ano. Sem dúvida, teremos que mudar essas ridículas etiquetas: os que apoiam o pró-Ocidente Conselho Nacional de Transição terão que ser chamados de leais e os rebeldes partidários de Kadafi se tornarão os terroristas que poderão atacar a nossa amiga nova administração líbia. Seja como for, Sirte, cujos habitantes se supõe estejam negociando agora com os inimigos de Kadafi, poderia rapidamente aparecer entre as cidades mais interessantes da Líbia.

O que Kadafi deverá estar pensando agora? Acreditamos que está desesperado, mas, será que está mesmo? No passado, escolhemos muitos adjetivos para qualificá-lo: irascível, demente, perturbado, magnético, incansável, obstinado, estranho, estadista (Jack Straw descreveu-o assim), críptico, exótico, louco, idiossincrático e – em datas mais recentes – tirano, assassino e selvagem. Mas com sua visão enviesada e astuta do mundo líbio, Kadafi poderia sobreviver – para prosseguir um conflito civil-tribal e assim consumir os novos amigos líbios do Ocidente no pântano da guerra de guerrilhas – e debilitar pouco a pouco a credibilidade do novo poder do governo de transição.

A natureza imprevisível da guerra na Líbia implica que as palavras raramente sobrevivam ao momento em que são escritas. Talvez Kadafi esteja escondido em um túnel debaixo do hotel Rixos ou esteja relaxando em uma das casas de campo de Robert Mugabe. Duvido. Enquanto isso, a ninguém ocorre travar a guerra anterior a esta.

Fonte: Carta Maior