Tem havido muitos sinais, recentemente, de que os EUA estão mergulhando fundo num padrão de crueldade. É difícil dizer por que uma coisa dessas está ocorrendo, mas parece que isso tem a ver com uma fé crescente na força como a solução de quase todos os problemas, seja em casa ou fora. O entusiasmo por matar é um sintoma inequívoco de crueldade. Isso é especialmente perturbador quando não são apenas os quadros do governo, mas pessoas comuns que se engajam nessas efusões.
Os debates da campanha presidencial são desenhados para dar aos candidatos uma oportunidade deles se expressarem aos eleitores. Mas as platéias, também, algumas vezes tornam seus pontos de vista conhecidos. Isso aconteceu nos debates republicanos ocorridos entre 7 e 12 de setembro, em dois episódios que foram bastante noticiados.
No da NBC, do dia 7, Brian Williams perguntou ao governador do Texas, Rick Perry, se em algum momento durante seu mandato, no qual foram executadas 234 pessoas condenadas à pena de morte (que agora subiu para 235) ele “lutou para conseguir dormir à noite, com a ideia de que algum desses condenados pode ter sido inocente”.
Perry tem dormido bem. O Texas, ele disse, tem um sistema judicial muito “bom”. Então, partiu para um certo tipo de desafio. Disse ele: “se você vier ao nosso estado...e matar...um de seus cidadãos...você será executado”. A plateia aplaudiu entusiasticamente.
Williams, claramente surpreso com a manifestação, seguiu em frente perguntando a Perry o que ele tinha feito para que a sua resposta tivesse levantado aplausos. O governador foi impassível e repetiu o seu desafio: “Nossos cidadãos...tornaram claro o motivo, e eles não querem cometer esses crimes contra os nossos cidadãos, e se você o fizer, enfrentará a justiça final”.
Que esses não eram os únicos sentimentos possíveis em relação a execuções penais tornou-se claro rapidamente depois disso. Um movimento de massas, não apenas nos EUA mas nos países ao redor do mundo, levantaram-se, sem sucesso, contra a execução no Estado da Georgia, de Troy Davis, cuja condenação por assassinato há vinte anos tinha sido posta em dúvida por nova evidência, inclusive a retratação de sete de nove testemunhas. Uma petição assinada por mais de 600 mil pessoas foi apresentada à comissão de execução penal, que deixou a execução seguir adiante.
No debate republicano do dia 12, houve outra expressão pública de entusiasmo pela perda da vida no Texas. Wolf Blitzer, da CNN perguntou ao deputado do Texas, Ron Paul, que militou contra o projeto para a saúde apresentado pelo Presidente Obama, qual seria a resposta médica que ele daria se um jovem que tivesse decidido não contratar um plano de saúde entrasse em coma.
Paul respondeu: “É a isso que a liberdade diz respeito: assumir seus próprios riscos”. Ele parecia estar dizendo que se o jovem morresse isso seria problema dele.
Houve palmas na plateia.
Blitzer pressionou: “Mas deputado, você está dizendo que a sociedade deveria deixá-lo morrer?”. Grita alguém na plateia: “Sim!”. E a multidão segue batendo palmas, em apoio.
Uma das características que esses eventos têm em comum é a crueldade. A crueldade é a prima irmã da injustiça, ainda que seja diferente. A injustiça e seu oposto, a justiça – talvez o padrão mais comumente utilizado para julgar a saúde de um corpo político – são critérios por excelência, e se aplicam acima de tudo a sistemas e suas instituições. A crueldade e seus opostos, gentileza, compaixão e decência, são mais pessoais. São qualidades pessoais que têm, no entanto, consequências políticas. Um senso de decência de um país se situa acima de sua política, fiscalizando e estabelecendo limites frente aos abusos. Uma sociedade injusta deve reformar suas leis e instituições. Uma sociedade cruel deve reformar a si mesma.
Tem havido muitos sinais, recentemente, de que os EUA tem mergulhado fundo num padrão de crueldade. É difícil dizer por que uma coisa dessas está ocorrendo, mas parece que isso tem a ver com uma fé crescente na força como a solução de quase todos os problemas, seja em casa ou fora. O entusiasmo por matar é um sintoma inequívoco de crueldade. Ele também apareceu depois da morte de Osama Bin Laden, que mobilizou uma estrondosa celebração ao redor do país. Uma coisa é acreditar na necessidade infeliz de matar alguém; outra é revelar isso. Isso é especialmente perturbador quando não são apenas os quadros do governo, mas pessoas comuns que se engajam nessas efusões.
Em qualquer involução no sentido da barbárie pode-se estabelecer dois estágios. Primeiro, os demônios são apresentados – testados, se houver. Segundo, vem a reação – seja a indignação e a rejeição ou outra aceitação [da indicação do demônio], até mesmo o prazer com a coisa. A escolha pode indicar a diferença entre um país que está restaurando a decência ou um outro, que está afundando num pesadelo. Foi um dia escuro para os Estado Unidos aquele em que a administração Bush ordenou secretamente a tortura de suspeitos de terrorismo. Nesse dia, a civilização dos EUA caiu num buraco. Mas afundou ainda mais baixo quando, tendo os fatos dos crimes se tornado conhecidos, o ex-presidente Bush e o ex vice-presidente Cheney abraçaram publicamente o mal feito, como o fizeram em sua recente tour de divulgação de seus respectivos livros. À impunidade que já desfrutaram eles acrescentaram a insolência, como se desafiando a sociedade a responder ou a, de outra parte, entrar em cumplicidade tácita com seus abusos.
E ainda assim houve pouca reação. Numa outra afundada no buraco, o Presidente Obama, mesmo tendo ordenado o fim da tortura, decidiu na direção contrária, ao impedir qualquer responsabilização pelas patifarias, e de fato afastou qualquer punição em geral. Ele sequer buscou, digamos, algo equivalente a uma Comissão da Verdade como ocorreu na África do Sul, após o fim do apartheid.
Há muitos outros sinais de que o caminho ladeira abaixo está bem estabelecido. Nossa justiça criminal busca a injustiça. A pena de morte desafia padrões de decência aceitos em qualquer país civilizado. O encarceramento de mais de dois milhões de americanos – a maior proporção per capita no mundo – é um reflexo assustador de um país que parece saber que não há outro remédio para as doenças sociais que não a punição. As condições das prisões são temerosas. Atul Gawande, da The New Yorker, apresentou um quadro vasto e terrível do sistema prisional, com técnicas de isolamento que, muitos acreditam, equivalem à tortura. Os prisioneiros podem ser mantidos em solitárias por anos, em pequenas celas, sem janelas, nas quais permanecem por 23 horas por dia.
Muitos prisioneiros – assim como o senador John McCain, que foi mantido prisioneiro durante a Guerra no Vietnã do Norte – reportaram que tamanho isolamento é mais angustiante e destrutivo do que a tortura física. “Isso quebra o nosso espírito e enfraquece a nossa resistência mais efetivamente do que qualquer outra forma de mau trato”, disse McCain. Em muitos casos, o confinamento solitário leva à desintegração mental. Um artigo no Jornal da Academia Americana de Psiquiatria e Direito diz que “o confinamento da solitária ...pode ser tão estressante clinicamente como a tortura física”. A diferença entre uma jaula e uma solitária pode ser maior do que a diferença entre a liberdade e a jaula, mesmo que essa punição possa ser imposta apenas administrativamente, por diretores de presídios.
Em 2010 mais de 25 mil detentos foram mantidos nessas condições.
Um deles – confinado não no sistema de prisão regular, mas em instalações militares – é Bradley Manning, o recruta de 23 anos, suspeito de vazar documentos para o WikiLeaks. Embora prisioneiro modelo, ele foi mantido por anos numa prisão de segurança máxima, enquanto era sujeito ao confinamento de 23 horas, impedido de se exercitar, sob vigilância permanente e, por um tempo, mantido nu. Na época, ele não tinha sido acusado de crime algum.
Gawande estabelece uma conexão entre o abuso dos estadunidenses em casa e a tortura de suspeitos estrangeiros na “guerra contra o terror”. “Com pouca preocupação ou resistência”, escreve, “temos despachado milhares de nossos próprios cidadãos para condições que horrorizariam nossa Suprema Corte há um século. Nossa vontade de nos desfazer desses padrões para os prisioneiros americanos tornou fácil o descarte das Convenções de Genebra proibindo tratamento similar de prisioneiros de guerra estrangeiros”.
Também se pode estabelecer uma conexão entre esses abusos e as atuais diretrizes das decisões orçamentárias, nas quais, como na prontidão para denegar assistência em saúde aos moribundos, uma impiedosa vontade de se desfazer das pessoas em sofrimento de qualquer ajuda que possam receber é evidente. A lista de cortes, alcançados ou propostos na agenda da direita é longa demais para enumerar, mas exemplos recentes, incluindo a assombrosa obstrução de assistência às vítimas do recente furacão Irene e da tempestade Lee, além de outros programas, foram cortados; a oposição a que se amplie o seguro desemprego, a derrota do Dream Act, o qual poderia dar às crianças dos imigrantes um caminho para a cidadania, a oposição ao gasto do estado com o programa de assistência em saúde para as crianças (S-CHIP, na sigla em inglês), assim como do Head Start, e por aí vai. Parece que ninguém é infeliz o suficiente para ser isento ou isenta do corte orçamentário, ao passo que, ao mesmo tempo, ninguém é feliz o suficiente para ser inelegível para ter corte nos impostos. Decisões orçamentárias não envolvem pena de morte, embora para muitos elas sejam questão de vida ou de morte.
A crueldade de uma sociedade não pode ser quantificada mais do que o pode a sua reserva de decência. Nem tampouco pode ser legislada, embora ambas possam estar manifestas na legislação. Por tudo isso, não pode haver dúvidas de que decisões básicas, que antecedem qualquer lei e são provavelmente mais importantes, são silenciosamente tomadas nos corações e mentes de milhões. Se elas seguem um caminho, um movimento de milhões, de repente, aparentemente do nada, aparece para protestar fortemente contra uma execução injusta. Quando vão pelo outro caminho, você acorda um dia para ouvir, com um frio na espinha, uma sala cheia de gente comemorando o assassinato de centenas de seus concidadãos.
Texto de Jonathan Schell - correspondente do The Nation, membro Doris Shaffer no The Nation Institute e dá um curso sobre o dilema nuclear na Universidade Yale. É autor de The Unconquerable World: Power, Nonviolence and the Will of the People, [O Mundo Inconquistável: Poder, Não-Violência e a Vontade do Povo] - uma análise do poder popular – e de The Seventh Decade: The New Shape of Nuclear Danger [A Década de Setenta: A Nova Forma do Perigo Nuclear].
Fonte: Carta Maior