sexta-feira, 28 de outubro de 2011
TRÊS ANOS DEPOIS Crise, os mesmos fatores de sempre
Foi há três anos, em um desses momentos de incerteza nos quais tudo estremece, tudo é sacudido e ninguém mais tem dúvida de que a coisa toda vai virar de ponta-cabeça. Em 7 de setembro de 2008, o governo norte-americanoassumiu a tutela da Fannie Mae e da Freddie Mac, dois mastodontes do crédito hipotecário. No dia 15 daquele mês, o venerável banco de negócios Lehman Brothers anunciou falência. No dia seguinte, chamada pelo Wall Street Journala lhe prestar socorro, Washington comprou o American International Group (AIG), primeira seguradora do país. O resultado foi inevitável: as bolsas despencaram. O poder público norte-americano nacionalizou boa parte do setor automobilístico e injetou centenas de milhares de dólares na economia. Keynes, o New Deale o Estado planejador estavam novamente em primeiro plano.
Em um ato de contrição universal, a burguesia do meio de negócios jurou que “nunca mais nada seria como antes”. O primeiro-ministro francês, François Fillon, falou de “um mundo à beira do abismo”; a capa da Newsweek anunciou, quase que aterrorizada, que “atualmente somos todos socialistas”; a Time Magazine conclamou a que se “repensasse Marx”para “encontrar os meios de salvar o capitalismo”; uma saída (satisfatória) que não parecia convencer o Washington Post,que perguntava, na forma de um editorial de tom mais macabro do que divertido: “Estará o capitalismo morto?”.1
Mas depois tudo voltou para o lugar. É fato que houve um breve intervalo, no qual as elites políticas e financeiras, outrora cobertas de glória e que tinham levado a economia mundial à beira do abismo, fizeram uma verdadeira travessia do deserto (que lhes permitiu, mais tarde, se dizerem perseguidas), mas elas se recuperaram bastante bem. Foram feitas declarações e montanhas de promessas – que não passaram disso. Finalmente, leis foram votadas, mas sua aplicação concreta – quer fossem novas estruturas de supervisão, de reforço de regras de prevenção, de enquadramento dos bônus ou de proteção do consumidor – revelou-se mais do que modesta.2
Resultado: a economia foi parar novamente na beira do abismo. Meados de 2011 lembravam o segundo semestre de 2008, começando com boas notícias para os mercados. O Comitê Bancário Europeu, encarregado de avaliar a solidez do setor financeiro em caso de nova crise, emitiu um comunicado tranquilizador: das noventa instituições financeiras europeias, 82 tinham revelado resultados positivos nos testes efetuados. Alguns dias depois, a Grécia foi salva da falência por um plano econômico que aliava sacrifícios a serem feitos por parte da população ao socorro financeiro por parte dos bancos europeus. O acordo não desencadeou o acerto dos contratos de cobertura contra o default de pagamento − os famosos Credit Default Swaps(CDS) −, o que teria sido desastroso para os bancos. E para o futuro, foi feita uma nova promessa de austeridade, uma “regra de ouro” de rigor orçamentário, destinada aos dezessete países da zona do euro. Nos Estados Unidos, um compromisso relativo ao teto da dívida, assinado in extremis antes do vencimento do prazo de 2 de agosto entre o presidente Barack Obama e a oposição republicana, previa o corte de gastos sem aumento de impostos.
Eterno recomeço
Mas não adiantou. A agência de classificação de risco Standard and Poor’s decidiu rebaixar a nota da dívida norte-americana, que passou de AAA para AA+. Apesar de ter se baseado em números não realistas (por erro, ao déficit budgetário em seis anos a agência acrescentou US$ 2 trilhões), a decisão provocou novo pânico nos mercados, mirando, em especial – o que não fazia o menor sentido –, os principais bancos europeus, que um mês antes tinham sido declarado sadios...
O peso da financeirização é tamanho, que uma inversão da tendência parece impossível. Por um lado, a relação de força entre Estados e mercado é mais do que nunca desfavorável aos primeiros; por outro, os dogmas estabelecidos ao longo das últimas três décadas de desregulamentação financeira parecem indestrutíveis. Quase todas as intervenções públicas procuram em primeiro lugar tranquilizar os mercados e proteger o setor financeiro, que brutaliza os Estados e suas dívidas. O fracasso dessas estratégias não impede seu eterno recomeço, pois em vez de desaparecerem para dar lugar a outras, mais pertinentes, essas ideias – que deveriam ter sido eliminadas, para não provocar mais danos – reaparecem sempre, como zumbis em filmes de terror, guiadas por seus guardiões, fazendo novos estragos.3
Os que estavam no comando em 2008 continuam controlando o sistema, armados com o mesmo arsenal ideológico. Os gigantes das finanças, salvos porque eram “grandes demais para quebrar” (“too big to fail”), são hoje mais gigantescos do que nunca. E continuam frágeis. O economista Paul Krugman ressalta: “As lições da crise financeira de 2008 foram esquecidas a uma velocidade vertiginosa, e essas mesmas ideias estão hoje na origem da crise – toda regulamentação é nociva, o que é bom para os bancos é bom para os Estados Unidos, a queda de impostos é a solução para o problema – e dominam novamente o debate”.4
A esse respeito, o percurso dos heróis diante da crise é revelador. Alan Greenspan, Robert Rubin e Larry Summers − respectivamente presidente do Banco Central norte-americano, secretário e secretário adjunto do Tesouro dos Estados Unidos, em fevereiro de 1999, quando a revista semanal Time, em uma capa que ficou famosa ao consagrar o trio como o “comitê de salvação do mundo” – passaram por um rápido eclipse. O primeiro era republicano, os dois outros democratas, e os três simbolizavam a supremacia inconteste da esfera financeira sobre o mundo da política.
Pouco depois de ser eleito, em 1992, Bill Clinton tomou a decisão de se dobrar aos ditames do mercado. O boom sem precedentes que se seguiu parecia confirmar as virtudes da financeirização, o que levou os dois partidos daquele país a se livrar a uma corrida desenfreada, para ver quem conseguia recolher mais contribuições eleitorais por parte das grandes instituições financeiras e para ver quais eram as que lhes concederiam mais vantagens. Sob a administração democrata foram realizadas, em 1999 e 2000, as grandes reformas que abriram caminho para a criação dos chamados produtos “tóxicos” que estiveram na origem do terremoto financeiro.5 O governo republicano de George W. Bush, ainda mais próximo de Wall Street, não perdeu tempo para destruir o que tinha sobrado dos mecanismos de controle, nomeando para postos-chave zelosos “desregulamentadores”. O arrimo dos governos às decisões das agências de notação se deu dentro desse quadro.6
Após a onda de pânico do segundo semestre de 2008, as elites financeiras foram apontadas como culpadas, mas seu poder efetivo nem por isso foi abalado. Em outubro de 2008, com ar abatido, Greenspan, o herói inconteste do boom econômico, admitiu diante da comissão econômica do Senado norte-americano que acabava de se dar conta de que suas convicções econômicas se baseavam em um “erro”. A contrição foi rápida e sem continuidade: dois anos depois, ele já tinha recuperado a soberba de sempre, criticando a legislação “Dodd- Frank”,que tentava – mesmo que bem timidamente – colocar um pouco de ordem no sistema.7 Quanto a Rubin, ele manteve ligações estreitas e lucrativas com o establishment financeiro, o que não impediu que se dedicasse a dar conselhos financeiros a seus compatriotas, no Financial Times.8 Summers, por sua vez, nem chegou a sair realmente de cena. Por ocasião da eleição presidencial norte-americana de 2008, ele foi um dos principais conselheiros do candidato Obama, e quando este último foi eleito ele passou a ocupar nada mais, nada menos, do que a presidência do Conselho Econômico da Casa Branca. Quando de sua demissão, no final de 2010, ele voltou a ocupar a cátedra de professor de Economia em Harvard. Mesmo depois do desmoronar financeiro, explica o jornalista Michael Hirsh, “o regime anterior e as construções intelectuais – mescla de friedmanismo, de greenspanismo e de rubinismo – ainda continuam imperando, por default”.9
Assim, mesmo que em toda parte (como recentemente na Grécia, ou nos Estados Unidos, na indústria automobilística) governos e empresas revoguem sem dificuldade o contrato social que os liga à população ou aos funcionários, Summers, então conselheiro de Barack Obama, explicou que os bônus astronômicos da seguradora AIG (socorrida pelo governo norte-americano) eram intocáveis: “Somos um país que tem leis. São contratos, e o governo não pode simplesmente revogar contratos”.10
Em um livro que explica “por que o mercado fracassa”, John Cassidy, jornalista econômico do New Yorker, vê nessa ideologia não o cumprimento do liberalismo econômico clássico, mas sua perversão. Ele lembra ainda que “o conceito dos mercados financeiros racionais e autorreguladores é uma invenção dos últimos quarenta anos”.11 Quando os profissionais de finanças tentam se situar na linha de Adam Smith, um autor que costuma ser venerado sem ser lido, eles violam despreocupadamente os princípios por ele enunciados, em termos de regulamentação financeira.
Alguns anos antes da publicação de seu famoso livro A riqueza das nações(1776), o pai da economia clássica havia assistido ao desabrochar de uma bolha financeira que provocaria a quebra de 27 dos trinta bancos de Edimburgo. Por isso, Adam Smith sabia que, quando entregue unicamente às forças do mercado, o mundo financeiro fazia a sociedade correr graves riscos. Por mais favorável que fosse ao princípio da “mão invisível”, ele estipulou que a lógica de um mercado livre e concorrencial não deveria se estender à esfera financeira. “Sob certa ótica, essas regras podem parecer uma violação da liberdade natural de alguns indivíduos, mas essa liberdade de alguns pode comprometer a segurança de toda a sociedade. Da mesma forma que é obrigatório construir paredes para impedir a propagação de incêndios, assim também os governos, tanto nos países livres quanto nos despóticos, são responsáveis por regulamentar o comércio de serviços bancários”.12
Alinhando-se à cólera popular
Se fosse o caso de buscar uma ascendência intelectual para o fundamentalismo desprovido de base empírica que impera atualmente, nós a encontraríamos relacionada a Ayn Rand (1905-1982).13 Dogmática e sectária, pregando o egoísmo como virtude suprema e fustigando toda e qualquer forma de intervencionismo do poder público, a publicista e romancista russo-americana tem entre seus discípulos um certo Alan Greenspan. Em 1963, ele já não aceitava como “mito coletivista” a ideia segundo a qual os homens de negócios, quando entregues a si mesmos venderiam alimentos ou medicamentos perigosos, títulos fraudulentos ou prédios de baixa qualidade. “Ao contrário, é do interesse de cada homem de negócios ter a fama de ser honesto e só vender produtos de qualidade.” Ou seja, se o mercado não funciona corretamente, é porque não existe mercado suficiente.
Os discursos entusiasmados que se ouvem atualmente, contra os “excessos” do mundo das finanças, oferecem aos políticos um meio de se alinhar de modo satisfatório à cólera dos cidadãos; eles soam como constatação da impotência. No dia 17 de agosto, depois da minicúpula dedicada à crise da dívida, Nicolas Sarkozy e Angela Merkel anunciaram em termos sibilinos a adoção de uma taxa sobre as transações financeiras, a famosa taxa Tobin, de dar calafrios ao setor financeiro.14 Todavia, essa decisão, que primeiro precisa ser aprovada pelos demais membros da União Europeia, é bem menos ousada do que parece. Ela não tem o objetivo de jogar areia na engrenagem da especulação financeira nem de gerar fundos para ajuda ao desenvolvimento, e sim, na melhor das hipóteses, de fazer os bancos pagarem (adiantado) uma ínfima parte de seus lucros futuros. Que eles não deixarão de auferir, como bem sabemos...
Texto de Ibrahim Warde é professor associado na Universidade Tufts (Medford, Massachusetts, EUA). Autor de Propagande impériale & guerre financière contre le terrorisme, Marselha-Paris, Agone - Le Monde Diplomatique, 2007.
http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=1001